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Mais Um São João Sem “lua”

MAIS UM SÃO JOÃO SEM LUA 
 
Nesse período junino em que comemoramos o São João, é inevitável e clara a saudade que sentimos daquele que foi, sem dúvida, um dos maiores suportes desta tão tradicional festa nordestina. Refiro--me a LUIZ LUA GONZAGA, patrimônio da nossa música e presença obrigatória nas grandes comemorações juninas, autor de inúmeros sucessos de motivação puramente ligada à essência do São João e que, por serem autênticos, dificilmente deixarão de ser lembrados. 
Apesar de vivermos num país onde os nossos valores costumam ser rapidamente olvidados, será muito difícil esquecermos a obra deixa-da por Luiz Gonzaga, ao longo de seus cinquenta anos de carreira em mais de cinquenta discos gravados, onde cantou as coisas bonitas, alegres e tristes da terra que ele jamais desprezou. Isso por que sua obra é muito rica, muito densa. É a expressão mais pura e autêntica do caboclo sertanejo, de sua vida e de seus costumes. É um patrimônio que transcende as fronteiras de Exu, no árido sertão de Pernambuco, onde nasceu, para atingir toda a nação, além de constituir-se um documento histórico de valor inconteste, no momento em que re-gistra os sentimentos e a alma dessa gente simples e sofrida do Nor-deste. 
A identidade de Luiz Gonzaga com a sua região e, sobretudo, com a terra que o viu nascer, faz deste sanfoneiro-compositor a maior expressão da música nordestina e um dos expoentes máximos da música popular brasileira, apontado pela critica especializada como um dos quatro fundadores da nossa música, ao lado de Pixinguinha, Noel Rosa e Dorival Caymmi. 
Como bem o definiu o mestre e folclorista Luiz da Câmara Cascu-do, “Luiz Gonzaga é um documento da cultura popular. Autoridade da lembrança e idoneidade da convivência. A paisagem pernambucana, águas, matos, caminhos, silêncio, gente viva e morta. Tempos idos nas povoações sentimentais voltam a viver, cantar e sofrer quando ele põe os dedos no teclado da sanfona de feitiço e de recordação." 
De fato, Luiz Gonzaga foi uma bandeira nordestina que sempre se fez presente nos mais diferentes pontos do país, no momento em que empunhava sua sanfona mágica e deixava fluir do coração as canções do saudoso e distante pé-de-serra que amava. Sua música é a expres-são dessa terra pobre e castigada, ora seca e triste, ora verde e alegre. De uma terra esquecida e desprezada, mas infinitamente boni-ta pela pureza de sua gente. 
Sua obra constitui-se numa verdadeira amostragem do universo sertanejo, nos seus mais diferentes aspectos. Com a sua música, Luiz Gonzaga mostrou o lado bonito do sertão, os costumes, as crenças, a vida simples e pacata do homem nordestino. Da mesma forma soube também denunciar os problemas e as injustiças sociais de que são vítimas seus conterrâneos. Vejo sua música como um álbum de fotogra-fias do Nordeste, enquanto ele, Luiz Gonzaga, um fotógrafo habilido-so, de aguçada sensibilidade, capaz de captar os sentimentos de seu povo e expressá-los sob a forma de poesia, através de baiões, xotes, toadas, etc... 
É certo que ele foi um precursor das chamadas músicas de pro-testo, tendo lançado ainda no início dos anos 50, em parceria com o poeta Zé Dantas, a toada-baião VOZES DA SECA. Mais adiante gravou A PROFECIA e a TRISTE PARTIDA, esta última do poeta cearense Patativa do Assaré, músicas estas que retratam o drama angustiante do homem sertanejo, vitimado pelas longas e periódicas estiagens que assolam o Nordeste, evidenciando também o descaso do governo no que tange à solução destes problemas. 
Infelizmente, vemos que a toada VOZES DA SECA (..."Seu doutô os nordestinos têm muita gratidão/pelo auxílio dos sulistas nesta seca do sertão/Mas doutô uma esmola a um homem que é são/ou lhe mata de vergonha. ou vicia o cidadão"... ) continua hoje tão atual quanto foi na década de 50, ao ser lançada, uma vez que os problemas do Nordeste continuam sendo os mesmos, como também ainda são as mesmas as soluções reclamadas por Luiz Gonzaga e Zé Dantas, há quase cinquenta anos. 
Embora jamais tenha ocupado qualquer posto na política, Luiz Gonzaga sempre esteve envolvido com as forças políticas. Participou da campanha que elegeu seu parceiro Humberto Teixeira Deputado Federal, em 1954. Fez jingles e campanhas para Carlos Lacerda e Getúlio Vargas, indistintamente.Amea-çou candidatar-se a Deputado Federal, em 1973, pelo MDB e, em 1980, pelo PDS, mas acabou desistindo por achar que, com a música, pode-ria ser mais útil ao seu povo. 
Com a força dos 120 baixos de sua sanfona branca, Luiz Gonzaga sempre defendeu os interesses de sua terra, tendo conseguido inú-meras melhorias para a cidade de Exu, num trabalho de fazer inve-ja a muitos políticos. 
Quando falamos em Luiz Gonzaga, imediatamente fazemos uma ligação de seu nome a músicas que falam de seca, de retirantes, etc. Mas, Luiz Gonzaga não cantou apenas a seca ou a vida árdua do sertanejo. Ele cantou também músicas brejeiras de pé de serra, a exemplo de CINTURA FINA, XOTE DAS MENINAS e NO MEU PÉ DE SERRA, e canções de exaltação ao sertão, como fez na pregação naturalista de RIACHO DO NAVIO (...“ Pra ver o meu brejinho, fazer umas caçadas/Ver as pegas de boi, andar nas vaquejadas/Dormir ao som do choca-lho e acordar com a passarada/Sem rádio e sem notícia das terras civilizadas”. . .) 
Na sua música há espaço também para algumas peças de humor, como por exemplo: SERI JOGANDO BOLA, LOROTA BOA, KAROLINA COM K, CAPIM NOVO e APOLOGIA AO JUMENTO. 
Todos sabemos da indiscutível contribuição dada por Luiz Gonzaga ao engrandecimento da música brasileira. Indiscutível também é a influência que ele exerceu sobre uma gama de novos cantores, principalmente sobre aqueles oriundos do Nordeste. Muitos são os que se confessam fortemente influenciados pela obra gonzagueana. Fazem parte desta geração de "afilhados" de Luiz Gonzaga: Alceu Valença, Gil, Caetano, Elba, Gal, Geraldo Azevedo, Quinteto Violado e o sanfoneiro Dominguinhos, o seu mais fiel e autêntico seguidor. 
Luiz Gonzaga criou uma verdadeira escola dentro de nossa música, na qual são muitos os seus seguidores, seja qual for o estilo. E foi o próprio Luiz Gonzaga quem nos falou dos principais ritmos por ele lançados no sul, numa entrevista concedida ao jornalista Tarik de Souza, do Jornal do Brasil, em 20.04.81. 
 
BAIÃO - "Corresponde ao samba da cidade grande. Pode prestar-se a qualquer tipo de letra e historia. Marcação forte e ritmada, semelhante á da toada de cegos que servia de introdu-ção ao desafio. Mas dizem que baião vem de baiano; outros de baía grande, baião. O baiano que saiu cantando pelo sertão deixou lá, abatida, e os cantadores do Nordeste fica-ram com a cadência do baião. Mas não havia uma música que o caracterizasse. O pessoal falava: dá um baião aí". 
XAXADO - "Presta-se ao ritmo e à dança, contando geralmente história de cangaceiro. A marcação é mais rápida e cadenciada do que a do baião". 
FORRÓ -"Baile de ponta de rua, dentro da zona boêmia. Letra provocante, quase sempre insultadora, contando proezas e valentias". 
XOTE - "Samba de pé-de-serra, espécie de bolero nordestino. O pé-de-serra é a parte mais fértil do sertão, onde há mais fartura. A palavra samba é usada genericamente para designar qualquer tipo de reunião ou baile. Costuma-se dizer: vai ter um samba na casa de fulano". 
TOADA - "Romântica e dolente, tem por tema a caminhada (reti-rada do sertanejo) e a arribada. Paisagens, pureza do amor e histórias pungentes de mãe". 
ABOIO - "Também dolente. No original não tinha letra. É o canto típico do boiadeiro, composto só de vogais, im-provisações na condução do gado, do boi (daí, aboio)". 
XAMEGO - "Com letras insinuantes e maliciosas, conta casos de amor e apego". 
Quando nos vemos diante da riqueza musical deixada por Luiz Gonzaga é que nos conscientizamos de sua importância como instrumentista, cantor e compositor e da enorme falta que hoje nos faz. 
Tão triste quanto a ausência do velho Lua é verificar a crescente descaracterização que ocorre nos festejos juninos. Observamos hoje, que esta descaracterização não está apenas na música, mas, também, da maneira como vem sendo comemorado. O que se vê nas grandes cidades não passa de uma grosseira imitação. Já estão dançando quadrilha ao som de musicas que nada tem em comum com a nossa tradição junina, com as nossas raízes. 
Dificilmente encontramos hoje músicas que cantem o "São João" na sua forma mais autêntica, como ainda é festejado no interior. O "São João" de quadrilhas e brincadeiras ao redor da fogueira, com balões e rojões, onde as pessoas fazem pedi-do a São João e se divertem com as adivinhações. O "São João" de fartura, com milho verde, canjica, pé-de-moleque, licor e aluá. As marchinhas, os forrós e baiões com motivação junina são, hoje, raríssimas exceções. Os atuais cantores da música nordestina parecem desinteressados na preservação desse estilo, ou encontram--se já corrompidos pela lucratividade que o pornoforró lhes pro-porciona. Evidente que há exceções e, como exemplos, podemos citar Nando Cordel, Flavio Jose e Dominguinhos, este último, a meu ver, o úni-co capaz de dar continuidade ao trabalho de Luiz Gonzaga. 
 
Diante desse quadro, parece-nos muito confortável o fato de ainda podermos ouvir canções que são verdadeiros clássicos da música junina. São obras que não envelheceram, não obstante tenham sido gravadas há quase quarenta anos, e que ainda continuam a trazer-nos alegrias e recordações. Como exemplos destes clássicos, podemos citar: SÃO JOÃO NA ROÇA (1952), NOITES BRASILEIRAS (1954), SÃO JOÃO ANTIGO (1957) e SÃO JOÃO NO ARRAIÁ (1960), todas da auto-ria de Zé Dantas e Luiz Gonzaga, além de OLHA PRO CÉU (1951 ), com-posta por José Fernandes e Luiz Gonzaga. 
E foi com estas e tantas outras músicas que o nosso saudoso LUA, por muitos anos, encheu de alegria as festas de "São João". Em dois de agosto de 1989, sua sanfona se calou para sempre. Sera mais um ano com um "São João" sem Lua na terra. Agora só nos resta preservar sua memória, fazendo com que outras gerações conheçam o seu trabalho. Tenho certeza de que seus “afilhados” e seguidores saberão dar continuidade à sua obra e fazê-lo sempre lembrado. 
 
Marcos Barreto de Melo 
Salvador, Junho de 2003 


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