História Musical Registrada em 78 Rotações
Jornal O Globo
11/06/2003
João Máximo
Com 15 anos de existência e a caminho de lançar seu CD de número 200, o selo curitibano Revivendo reafirma sua condição de maior e mais importante perpetuador dos discos de 78 rotações por minuto produzidos no Brasil. São mais de quatro mil faixas — na época chamadas de lados — que grandes gravadoras como a Odeon e a RCA Victor, ou não tão grandes como a Continental, a Copacabana, a Sinter e a Columbia pré-CBS, deixaram que se perdessem, inutilizando as matrizes originais e só raramente se interessando em reedições, primeiro em LP e já agora em CD. Antes de comemorar tudo isso com seu lançamento de número 200, o Revivendo acaba de mandar às poucas lojas que revendem seus discos no Rio um pacote com 19 títulos (disponíveis por reembolso no site www.revivendomusicas.com.br).
Catálogo que não é mero empreendimento nostálgico. Nos discos de 78 rotações por minuto, feitos no Brasil de 1902 a 64, está praticamente toda a base de nossa música. Dos pioneiros choros de Joaquim Callado ao “Chega de saudade” com que João Gilberto inaugurou a bossa nova, todas as seis décadas foram registradas naquele formato. Ou seja, nas frágeis bolachas com uma música de cada lado.
Cantores predominam no novo lote do selo
Os discos do novo pacote exemplificam bem os diversos tipos de repertório com que o Revivendo compõe seus CDs. A maioria dos 19 é dedicada a cantores (Sílvio Caldas, Nelson Gonçalves, Carlos Galhardo e Vicente Celestino, este com nada menos de seis discos, ou dois álbuns triplos, de gravações suas para programas e novelas de rádio). Há uma coletânea de versões e outra de sambistas de bossa (Moreira da Silva, Jorge Veiga e Caco Velho). Dois compositores são homenageados (Luiz Gonzaga e Ataulfo Alves). E dois instrumentistas também (o pianista dançante Waldir Calmon e o trompetista Bonfiglio de Oliveira). Na série dedicada ao carnaval, saem mais três volumes (os de números 29 a 31). Como é do gosto de Leon Barg, o dono do selo, que ressalta a resistência do carioca à música caipira pré-sertaneja de butique, completa-se o pacote com o segundo volume de uma dupla no gênero (Serrinha & Caboclinho). As gravações são todas originais, a mais antiga delas de 1909 (a dupla Os Geraldos cantando samba de carnaval), remixadas digitalmente pelo sistema Cedar/Dart, que Barg adquiriu em Londres em 1996.
— Comecei essa história em 1987 — lembra ele. — Foi quando minha filha, Laís, casou-se e mudou-se para São Paulo, onde está até hoje. Ela é formada em desenho industrial e foi quem bolou as capas de todos os discos.
Primeiro foram 73 LPs nacionais e 13 de artistas estrangeiros. Com o advento do CD, Barg dividiu seus projetos em dois, o do Revivendo propriamente dito e o do selo Again, com raridades de Tommy Dorsey e Harry James, Carlos Ramirez e Jeanette MacDonald, Victor Young e sua orquestra e os Lecuana Cuban Boys.
O mais valioso está mesmo nos CDs Revivendo. No recente pacote, justamente no de número 199, dá-se uma verdadeira redescoberta de Bonfiglio de Oliveira, a quem os mais jovens conhecem, no máximo, do choro “Flamengo” ou da valsa “Mar de Espanha”: 21 composições do trompetista estão no repertório, algumas executadas por ele mesmo. Waldir Calmon — sucesso nos anos 50 com os LPs da longa série “Feito para dançar” —- também andava esquecido, embora não tanto quanto Bonfiglio. Os discos dos cantores, é claro, interessarão mais aos respectivos velhos admiradores, sobretudo os de Vicente Celestino, que já gravara a maioria do repertório em estúdio, quer dizer, em melhores condições técnicas. Mas o de Sílvio Caldas, “Deusa da minha rua”, é exemplar. E não só para fãs.
Barg explica por que a quase totalidade de seus CDs tem exatamente 21 faixas. Não se trata de superstição, como já se supôs. Mas ele sabe que muitos compradores têm o hábito de passar o CD para uma fita cassete, de modo a ouvi-lo no carro. Com 21 faixas, não se excedem os 60 minutos da fita virgem. Ele também insiste em que best-sellers, de verdade, não há em seu catálogo.
— Francisco Alves, Carmen Miranda, Orlando Silva, nenhum desses vende muito — garante. — Os compradores dos meus discos têm, na maioria, mais de 60 anos. E muitos, que compravam pela mala-direta, já se foram.
Vicente Celestino já teve setes CDs lançados
Nesses 15 anos, Barg realmente privilegiou os cantores. Foram sete discos de Vicente Celestino (contando com os dois triplos), seis de Francisco Alves, seis de Orlando Silva (quatro destes de programas de rádio), quatro de Dalva de Oliveira, dois de Sílvio Caldas, dois de Carlos Galhardo, um de Mário Reis, outro de Augusto Calheiros, outro mais de Paraguaçu. Cantores do rádio há muito afastados do disco foram surpreendentemente desarquivados: Adelaide Chiozzo, Bob Nelson, Orlando Correia, José Ricardo, Osni Silva, Jorge Goulart e Nora Ney, Albertinho Fortuna, Leila Silva, Carlos Nobre. E, é claro, Marlene e Emilinha, esta também em acetatos tirados de rádio.
Barg costuma usar um cantor mais famoso para “puxar o disco” em que aparecem outros menos conhecidos. Assim, é possível encontrar Ciro Monteiro, Moreira da Silva, Aurora Miranda, Carmen Barbosa, Gastão Formenti, Nuno Roland, Linda e Dircinha Batista, João Petra de Barros, Luís Barbosa, Gilberto Alves e outros puxados por Chico, Sílvio, Mário, Orlando, Carmen. Os grupos vocais também saem em lotes (exceção do Trio de Ouro). Como se disse, há destaque para a turma caipira (só Cascatinha & Inhana mereceram cinco CDs). Alguns são montados por gêneros: choro, valsa, canção, samba, frevo, dobrado, foxe, música de Natal ou de festa junina. A coleção de carnaval, 31 volumes, 650 fonogramas, é o que há de mais abrangente sobre a maior festa brasileira (brasileira, mesmo, pois cinco volumes abrigam a obra do pernambucano Nélson Ferreira).
Os compositores também são distinguidos com suas gravações originais. Tom Jobim já foi assunto de quatro CDs. Lupicínio Rodrigues e Sinhô, também com quatro. Em seguida, com três cada, vêm Noel Rosa, Ataulfo Alves e Leonel Azevedo. Chiquinha Gonzaga está em dois. E Ary Barroso, Zequinha de Abreu, Ernesto Nazareth, Cartola, Braguinha, Lamartine Babo, Orestes Barbosa e Mário Lago, em um cada.
Barg tem um dos maiores acervos de 78 do Brasil. E não pára de comprar, sempre atrás de raridades ou de discos em melhores condições dos que já tem, lembrando que as gravadoras brasileiras jogaram fora suas matrizes, de modo que os 78 são a única fonte.
— Tenho quase tudo, mas não tudo — ressalta. — Devo muito a amigos como Ary Vasconcelos, Jairo Severiano, Abel Cardoso Júnior, colecionadores e pesquisadores generosos. Mas ainda procuro peças raras. Há dez anos que corro o Brasil todo atrás de “Fonte abandonada”, de Pixinguinha e Cândido das Neves. Deixei de fazer uma caixa com a obra completa do Cândido por causa disso. A gravação é de Sílvio Vieira para o selo Victor. Até o número de catálogo eu sei de cor: 33307.