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Crônica de Sorocaba - Moar!

Crônica de Sorocaba - Moar! 
 
 
Paulo Tortello 
 
"São João está dormindo, 
não acorda, não!" 
 
QUANDO eu era pequenino, "de pés no chão", como canta aquela marcha junina de quando eu era pequenino... quando eu era pequenino, achava que, como na música do Chico, "no tempo da maldade, a gente nem tinha nascido".  
 
E brincava, inocente, de mocinho e bandido: 
- Moar! - que gritava, apontando um revólver de pau a meu amiguinho mais próximo, que, obediente às regras do jogo, erguia as mãos, rendido.  
 
"Moar" era nossa maneira de ordenar ao "bandido" que levasse as mãos ao ar. Na época, disso eu não sabia e imaginava que a expressão fosse inglesa e própria dos "mocinhos", como eu via nos filmes de faroeste no cinema, e, por isso, caprichava no erre torto para emprestar, à expressão, um colorido "western": 
- Moar!  
 
A segunda Grande Guerra era, imagine-se, chamada de "última". Eu entendia "última" como "derradeira", mas os mais velhos queriam era dizer "mais recente", como logo vi, depois. Governantes despóticos, que escorchavam seu povo com impostos, eram, pra minha cabecinha de vento, lendas muito e muito antigas, diziam de um tempo vetusto, quem sabe apenas inventado pelos adultos para nos mostrar o quanto o mundo de agora era bom. De qualquer forma, fosse como fosse, fosse o que fosse, o que era mesmo era que tudo o de mau era de antes, de muito antes de mim, e, portanto, de tudo, de antes do mundo, ou seja, de antes de nós que aqui estamos, que, ao contrário dos que por nós dizem que esperam nos ermos dos campos santos, somos o que importa, isso é o que é, ah, o antes de nossos mins, um velho mundo velho de que nos ríamos, todos e cada um, uma, aliviados e felizes por não viver num tempo assim daqueles como os que se haviam ido embora - e há quanto tempo! - para sempre e sempre e para nunca e nunca mais.  
 
O Danúbio, bailavam-no azul, ninguém lhe falava em bombardear as pontes. Bagdá, ninguém não a explodia em mísseis, era tão-somente (se fosse pouco!) a cidade encantada das histórias de maravilhas das Mil e Uma Noites. A China era um país de mistérios fascinantes, ninguém não me falava de canhões em suas praças. A Europa era linda e podia-se ir para lá sem correr o risco de ter o visto de entrada negado. Os Estados Unidos eram uma nação apenas interessante, lá em cima, ninguém pensava em chegar lá a nado ou balsas. E o Brasil - ah! o Brasil! - era o país do futuro. 
 
As coisas andam mudadas. Tomo sentido do noticiário mundial, nacional, local - e horrorizo-me. Cada vez compreendo mais profundamente a expressão do Cristo quando gemeu: 
- Meu reino não é deste mundo! 
 
Nem o meu. 
Nem, creio, o de ninguém.  
Meu coração será maior que o mundo? Ou será esse mundo bem maior que os nossos corações? 
Não sei. 
Neste momento, as notícias nas folhas de jornais assolam-me e assombram-me. Nada mais desumano que um humano e outro humano. 
 
Talvez, penso, esse desaprendizado tenha já advindo daqueles "Moar!" com que nos ameaçávamos tão inofensivos. Talvez não. 
 
Talvez o ser humano seja mesmo assim e, nossas mãos, se as não mantivermos ao ar, talvez as fechemos no pescoço de outro de nós, esse, de fato, com as mãos ao alto. 
 
Talvez seja o caso de cerrarmos as mãos em oração. 
Talvez, apenas, o caso de nos darmos as mãos. 
E, só aí, erguemo-las no ar. 
Melhor do que soltar rojões. 
Mesmo num dia como hoje. 
Mesmo neste dia de São João. 
 
Um poema 
 
Olhar 
 
Olhar-te é ver as ondas 
Longas 
Que pervagam  
 
Vagas 
Sobre o mar 
 
 
A amar  
 
Amar-te é ser as longas 
Ondas  
 
Vagas 
Que persegues  
 
Sagas 
Sobre amar 
O mar  
 
Cultuo-te como quem mira o mar 
E amar-te é descansar os olhos  
 
E amo-te como quem ama olhar 
O mar que tens a cultuar  
 
Paulo Tortello 
 
Paulo Tortello é Poeta. E-mail: tortello@terra.com.br  


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