Crônica de Sorocaba - a Professorinha
Crônica de Sorocaba - A professorinha
HÁ MUITO tempo, já, que ela me ensina... A dizer tudo, parece-me (a mim quer parecer), só fez isso na vida. Já se vão lá para mais de vinte anos! E nem me é possível, agora, recordar-me de todas as aulas que me deu, as coisas todas que me ensinou. As que me ficaram foram, todas, lições de vida.
Sim. Ensinou-me, antes de mais nada, a aceitar a vida, simplesmente, e, depois, a aceitar a vida como ela é, e a aceitá-la por inteiro, sem voltas, meias voltas, nem revoltas.
É dela a história das duas irmãs e os sapatinhos. Uma das duas irmãzinhas, em prantos, buscava, um dia, em vão, por seus próprios sapatos, que haviam, misteriosamente, desaparecido. A outra apenas espiava, até que lhe indagaram pelos calçados da irmã - e ela, sorridente, mostrou-os onde os havia ocultado, por detrás duma enorme cortina. E a questão foi: por que a irmã que chorava em nenhum momento não interpelara a outra, que sorria, sobre se esta lhe havia escondido os sapatinhos? Foi-se indagar isso dela. E ela explicou: antes de desconfiar de sua própria irmãzinha, considerava a possibilidade de ela mesma não se lembrar de onde houvesse deixado os seus sapatos...
Lembro-me de quando, para meu susto e desconcerto, por semanas sem fim, manteve-se internada num hospital: que de agonias! Era ela, lá, dentro, já desenganada pela Medicina, e a gente, cá, fora, dia a dia, aguardando, noite a noite, até que ela, delicada, vitoriosa, veio a nosso abraço.
De lá para cá, sempre que a olho, olho-a com a atenção que se olha a quem pode, de repente, partir para sempre: que é como devemos nos olhar a todos uns para os outros e a todo momento - mais uma lição que ela me deu. Quanto ensinamento ela não guarda em seus olhos translúcidos, de uma pureza tão imensa, tanta, que até nos envergonha olhá-los fundo! Guardo a ânsia de Bilac por ouvi-la e vê-la.
Um exagero? Mas, quem não se apaixona por sua professora? É que ela, para mim, é como era aquela ela para Sheakespeare - "She speaks! O speake again, bright angel!" - que enterneceu Machado, que a cantou assim:
"Quando ela fala, parece
Que a voz da brisa se cala;
Talvez um anjo emudece
Quando ela fala.
Meu coração dolorido
As suas mágoas exala.
E volta ao gozo perdido
Quando ela fala.
Pudesse eu eternamente,
Ao lado dela, escutá-la,
Ouvir sua alma inocente
Quando ela fala.
Minh`alma, já semimorta,
Conseguira ao céu alçá-la,
Porque o céu abre uma porta
Quando ela fala."
E pensar que poucos conhecem o poeta por detrás do autor de "Dom Casmurro"!
Ela, mestra, sempre foi ótima; já, eu, aluno, tenho sido renitente na ignorância e contumaz nos vícios. Pretensioso, tardei a compreender-lhe a sabedoria inocente, presumindo que a inocência não poderia ter a sabedoria que nos traz a perda da inocência. Não a tem, de fato, como a tenho: tem-na diferente, tem-na outra. Só dela. E que partilha, generosa, com seus próximos. Nem mede mãos nem nada para ensinar a seus aluninhos amados, a quem visita nas casas onde moram, aos quais chama pelos nomes e de que conhece as histórias, um por uma e cada. É querida e solicitada e nem posso enciumar-me de que se veja cercada dos que a desejam: antes, vaidoso, encho-me de orgulho por ter sido, talvez, o seu primeiro aluno.
Agora, minha professorinha colou grau. Sim, a falar com detalhe, colou grau ainda ontem, literalmente ontem. Hoje, dançaremos, festejando sua conquista. Atenciosa, gentil, convidou-me para seu padrinho de baile - dançarei com ela a primeira valsa da noite.
Dizem que a gente nunca que se esquece da nossa professora. Verdade. Já canta a música inevitável: "Que saudade da professorinha que me ensinou o bê-á-bá!"
Desta aqui, menos ainda que esqueceria. Esta professora, que agora segue os passos trôpegos do pai e a trilha luminosa que lhes abriu o avô, é minha filha Ana Carolina - a quem dedico a crônica de hoje.
Parabéns, mestra!
E obrigado, professora.
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Um poema
LÓGICA DESCARTES
Os desastres longínquos sossegam-nos do perigo
próximo.
O próximo perigo passa-nos despercebido
e não passará de um desastre longínquo para alguém distante
e desapercebido do perigo
próximo
de seu próprio próximo
desastre.
Paulo Tortello é Poeta.
E-mail: tortello@zaz.com.br