Crônica de Sorocaba - o Grande
Crônica de Sorocaba - O Grande
ABRACEI-A, e ela sussurrou em meu ouvido, com doçura:
- Seu amigo foi embora. Para sempre.
Há contados 2.356 anos, Filipe de Olympias assistiu ao nascimento de seu filho e decidiu chamar-lhe pelo nome, de origem grega, "Aléxandros", cujo significado era um prenúncio de seu nomeado: "aléxo" é "repelir, defender"; e "anér, andrós", "homem". Alexandro (depois Alexandre pela influência francesa), é "o que repele os inimigos", "o que defende ou protege o homem ou os homens". Leia-se, é claro, os "seus" nossos próprios homens, sempre.
O fato é que Alexandre, de Filipe, subiu ao trono logo aos 20 anos, logo submeteu os helenos, indiferente à origem e ao significado de seu nome (ou justamente pela causa dessas ambas coisas), logo subjugou também os persas com seu deles Dario, e, logo, o Egito; logo e logo, fundou Alexandria, tomou logo a Babilônia, logo Susa, logo incendiou Persépolis e fez ainda mais, e logo, até logo morrer na chamada "idade de Cristo", 323 anos antes que o próprio viesse ao mundo. Foram apenas 13 anos que já duram 24 séculos.
Deste Alexandre guardam as gentes memória de seu nome unido ao cognome "Magno". Em Português, particularmente, embora não tão-somente, e decerto que por causas de rimas, assonâncias, consoâncias, ou causas de causas outras, que ocultas, que ocultadas, o que há é que o nome Alexandre surge-nos visceralmente vinculado ao epíteto "O Grande".
Mas, não é desse quase primevo "Aléxandros" que ora digo aqui.
Aqui, agora, conto de Alexandre, o Alex, não menos grande que muita gente realmente grande, nem, muito menos, menos grandioso que toda gente, que toda é grandiosa, mesmo a pequenina.
Conheci Alexandre Ribeiro da Silva de morar-lhe junto à casa dos pais, seu Osvaldo, octogenário rijo, Dona Rosalina, um encanto carinhoso.
Alex freqüentava-me o tugúrio, onde o recebia em meus escaninhos mais controvertidos, exclusivos dos amigos mais introvertidos e as amigas mais extrovertidas. Pode parecer insensato, aos que o conheceram, algum um, como eu, chamá-lo, a um outro, como ele, introvertido. E mas contudo, e apesar de sua generosa exuberância, Alex, com seus riso e sorriso, era um homem profundamente concentrado em tudo o que lhe passava na vida enquanto a vida não lhe passou. Ensimesmado - era assim que se comportava, no mais íntimo de si mesmo. E era assim que amava, em si. E assim vivia, de si para consigo. Só, por si.
Nada raramente, aparecia em casa fazendo-se acompanhar de seu filho, Ramon - uma de suas razões para sorrisos. Queriam-se como é raro de se ver pais e filhos declararem-se a benquerença de um e outro, dizendo-o um ao outro e, um e um, à gente.
Acostumei-me a, como diria o poeta das estrelas, ouvi-lo e vê-lo. Era-me familiar sua voz saltando-nos os muros vizinhos, falando a seu menino, ou, por vez, pulando-nos das paredes comuns, em costuras inocentes junto aos pais, uma tagarelice menina. Por vezes, ainda, eu saía à janela e via-o, ouvia-o - sem surpresas, agora é que me quedo pálido de espanto.
Nem possuo automóvel e aborreço abandonar minha caverna. Entretanto, os caminhos da gente, e os descaminhos das pedras, como conta o conto, fazem-se ao caminharmos. E foi que, aquela noite, eu saíra a trabalhar fora e voltava, pelas 11 horas, de carona com o gentil-homem Pedro Nunes, numa conversa agradável, eis senão quando o interrompi:
- Pedro, volte um pouco... Acho que, ali atrás, era um amigo meu...
Era. Alex havia sofrido um acidente com seu carro, que, à primeira vista, parecia cuidadosamente estacionado sobre a grama da margem do rio junto da avenida. Tinha apoiadas as mãos sobre o capô, num gesto desolado e desiludido. Teria quebrado uma costela, queixava-se, e de fato: não uma, duas - e trincara outra mais. Ninguém sabíamos, porém tivera, ali, um dos pulmões perfurado. Doíam-lhe, maiores, umas dores de amor e desamores, que pranteou, criança, reconfortando-se-me ao peito insuspeito.
Com a ajuda do verdadeiro toque de um anjo de meu prestimoso Nunes, tratou-se de Alexandre, para quem chamamos um serviço de resgate, e até de seu fatídico automóvel, para que providenciamos um guincho para o transporte. Procurávamos, dessa aflita forma minuciosa, como que garantir o bom atendimento que Alexandre merecia. Depois de o vermos, a ele, de tal sorte assim bem acudido, levado na ambulância aos homens da saúde, Pedro e eu reaviamo-nos para nossos lares.
Nada não valeu, contudo, o somatório de esperanças a que nos atiramos, os da família e os amigos, buscando-lhe as notícias, dia a dia.
O companheiro querido somava 48 anos de idade, quinze mais que seu predecessor famoso, o Macedônio, e, todavia, pouco, muito e muito pouco, para nós todos outros mortais, mais comuns que uns mortais outros. Todos partimos cedo demais. A hora de nossa morte, se bem que precisamente desconhecida, é a única da qual gozamos a justificada convicção de que ainda haveremos de vivê-la. E, certeza embora, a "Dama Branca", quando se nos ergue aos olhos (que nos fecha), invariavelmente nos apanha em surpresas, a nós próprios, de fato, menos, verdade, que aos que deixamos como ficamos nós mesmos quando são os demais que nos deixam: estranhamente, estupefatos, um desconsolo atemorizado.
O filosofador Fernando Dini costuma dizer que o homem não se permite conceber a verdadeira consciência do que é a eternidade pelo fato simples de esse conhecimento o aterrorizaria até o paroxismo. "Para sempre" é tempo em demasia. Mães sabem. Pais suspeitam. Amigos descobrem.
Alex viveu - e não sobreviveu.
Deixou-nos o ar ainda cheio de seu riso cheio do cheio coração no rosto cheio.
Ainda o procuro pelo céu deserto.
Grande Alexandre.
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Uma poesia
Dia de criança
A vida cheia de dias
disto e daquilo, não tinha.
Só tinha as horas vazias
do dia que ia e vinha.
Eram dias que era um dia
comprido, não acabava.
Uma só monotonia
que a noite cheia quebrava.
Batia carteira de velhos,
cheirava cola escondido,
batiam nele os mais velhos,
mas já tinha resolvido:
um dia, só por vingança,
ia brincar de criança.
Paulo Tortello é Poeta.
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