Crônica de Sorocaba - Pais Sem Filhos
CRÔNICA DE SOROCABA - Pais sem filhos
VAMOS encarar o fato: o ser humano é, no fato dos fatos, um animal primitivo, violento, assustador. De fato, é fato. Mas, isto, contrariamente ao que se prefere acreditar, visto um a um, como se olham dropes. Olhada em seu conjunto, trata-se, a Humanidade, de uma espécie nada e nada menos que apenas maravilhosa. E, como (lembrava-me, sempre, meu inesquecível pai, João) "elogio em boca própria é vitupério", não me vou, aqui, prolongar-me nos encômios a meus afortunados semelhantes.
Interessante é que tudo isso que aí vai pode ser visto exatamente do modo contrário ao que foi exposto. Realmente, como será que será o ser que somos?
Vamos encarar o fato: o ser humano é, no fato dos fatos, um animal espiritualizado, terno, cativante. De fato, é fato. Mas, isto, contrariamente ao que se prefere acreditar, visto em seu conjunto, como se olha a chuva. Olhada uma a uma, trata-se, cada pessoa, de uma espécime nada e nada menos que apenas insignificante. E, como (lembrava-me, sempre, meu inesquecível pai, João) "elogio em boca própria é vitupério", não me vou, aqui, prolongar-me em meus achares vituperiosos a meus desafortunados semelhantes, já que um vitupério em boca própria é vitupério, mesmo.
Viram? As duas partes são verdades. E, a verdade, também, é que a verdade é uma só: vária como nós.
Por isso que, mesmo, ainda, assim, apesar de todo o tudo, eu digo-lhes: em verdade, em verdade, há, unicamente, um momento, um único, porém, múltiplo, na vida do homem, em que espécie e espécime se amalgamam, mesclam-se entre si, num pleonasmo amoroso, e bem diante de nossos olhos. E, a verdade, digo-lhes, digo-lhes, é, sempre, uma, só uma, só: e é que essa mistura tal somente só é possível é com aquilo que já o grande Vieira chamava os "ouvidos do coração", o que, lembrava o Padre, nem sempre é bom e pode até ser muito mau, ao contrário dos olhos do coração, que sempre são bons e podem até ser ótimos. Então, corrijo-me: não serão os ouvidos, serão os olhos, de fato e realmente, as janelas da alma, que é mesmo como se diz por aí. É bíblico: onde os colocamos, os nossos olhos, aí estará nosso coração. Realmente, fato.
Nem se permita o leitor, a leitora, empanar a vista pela miopia comum a todos nós. São, esses (aqueles), os olhos com que olhamos a quem queremos mais: aquele, aquela a quem alguma, ou um, dirija o olhar do amor, surge-nos, a cada um, cada um deles, elas, subitamente e desde sempre, como, verdadeiramente, a maravilha da expressão de tudo quanto a Humanidade tem de fascinante na expressão de um único indivíduo, porém, este, essa, despojado dos vícios que são os caracteres (e, decerto, a inefável beleza) das encarnações singulares. Ela, ele, será, num só passe, maravilha de espécie e maravilha de espécime. Dará expressão às virtudes humanas e humanidade à expressão de suas virtudes. Ah, o amor...
Nós amamos nossos pais, nossos irmãos, nossos homens e nossas mulheres, nossos filhos, nossos amigos, nossos conhecidos, nossos vizinhos... há uns que amam, simplesmente, o próximo, nem necessariamente próximos... mas, enfim, em cada um dos que amamos, igualmente, nos amamos nós a nós próprios. Nem é menos certo amarmos sermos amados e até amarmos descobrirmos, no amor que recebemos, o amor do próximo por si próprio – o que é apenas outra face esplendorosa de uma mesma maravilha única.
Podem-se medir amores? Não se podem. Dói-nos, demais, a perda de qualquer deles, elas.
Há dias, morreu Renatinho, um guri da rua onde moro. Foi-se súbito. Atropelado. Era um menino doce. Contava doze anos. Desde os nove que parava defronte minha casa para brincar, através da grade, com Alfabeta, minha cachorra, que, assim, perdeu um de seus mais carinhosos companheirinhos. "Cadê o Alfa?", perguntava-me. Alfabeta nada não me indaga e eu, aflito, explico-lhe, entretanto, que Renato, que não teve tempo de chegar a ser um homem feito, tornou-se, já, maravilhosamente, Humanidade.
Jamais não passei pela dor, mas, que sei tremendíssima, da perda de um filho. Conheço amigos que se transtornaram, outros, que, verdadeiramente, ensadeceram, houve os que se acovilharam no desespero das religiões dos desesperos e desesperados, nem um só, todos nunca mais foram os mesmos. Que hei de dizer? Poeta, acodem-me poesias, inda que alheias, que é como sei rir, e que é, também, como sei chorar. Dedico versos ao amiguinho que partiu sem nem sequer se despedir da gente, que o pranteia. Dedico-os a nós, cada um.
"Dorme, dorme, dorme...
Quem te alisa a testa
Não é Malatesta,
Nem Pantagruel
– O poeta enorme.
Quem te alisa a testa
É aquele que vive
Sempre adolescente
Nos oásis mais frescos
De tua lembrança.
Dorme, ele te nina.
Te nina, te conta
– Sabes como é –
Te conta a experiência
Do vário passado,
Das várias idades.
Te oferece a aurora
Do primeiro riso.
Te oferece o esmalte
Do primeiro dente.
A dor passará como antigamente
Quando ele chegava.
Dorme... Ele te nina
Como se hoje fosses
A sua menina."
("Acalanto para as mães que perderam o seu menino", Manuel Bandeira.)
Paulo Tortello é poeta. Fone/Fax: (0xx15) 231-8218.
E-mail: tortello@zaz.com.br
Um poema
Brilho
A lâmpada acende.
O escuro sobe no muro:
A luz, de repente.
Paulo Tortello