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Crônica de Sorocaba - Verdades

Crônica de Sorocaba - Verdades 
 
 
 
"O poeta é um fingidor. 
Finge tão completamente 
Que chega a fingir que é dor 
A dor que deveras sente." 
 
 
 
(Fernando Pessoa, "Autopsicografia")  
 
DICIONÁRIOS prestam-se ao que nem o mesmo Cristo se arriscou e, por temerários ou destemidos, definem a verdade. No "Aurélio": "Conformidade com o real, exatidão, realidade"; no "Michaelis": "Aquilo que é ou existe iniludivelmente". Ambos expandem o verbete, cada um a seus modos lá deles, o que me faz pensar na eterna relatividade de todas as coisas.  
 
Nessas horas de dicionários, lembra-me sempre consultar o de Antonio de Moraes Silva, primeiro brasileiro a dedicar-se a tarefa assim ingrata, nos idos imperiais de 1813, nada menos. A verdade, ali, é definida, respeitada, aqui, sua ortografia, como o "dicto, facto verdadeiro, conforme á natureza das coisas, que por esse dito representamos, conforme ao que se passou, conforme ao que entendemos". Atente-se para este "conforme ao que entendemos": ora, ora, a verdade é tudo o que se deseje, ainda que a gente não a deseje. E não é verdade?  
 
Nem diferente é o caso de "mentira". Para o tio do Chico, é o "ato de mentir; engano, impostura, fraude, falsidade", além do comezinho "engano dos sentidos ou do espírito; erro, ilusão" - acepção que em muito ou mesmo tudo perdoa o mentiroso. Já, para o "Michaelis", mentira é não só o ato de mentir como, ainda, é "afirmação contrária à verdade, engano propositado" - aqui, parece haver uma implícita condenação do homem que mente. Diz-se "homem" no senso genérico, que, afinal, diz o mesmo senso, comum, ser a mentira um "modus vivendi" feminino. Isto há de ser outra mentira? Verdade.  
 
E no velho Moraes, que encontramos? Nesse também se registra o verbete "mentira", mas, define-o, ele, de maneira banal: "O acto de mentir; as palavras com que se mente; oppõe-se á verdade".  
 
Melhor sua, dele, Moraes, definição de "mentir": "Dizer o contrário do que temos em mente, induzindo em engano a quem mentimos"; com a poesia de sempre, registra-lhe gracioso uso figurado: "mentiu-me a esperança; i. é, enganou-me, falhou o que esperava". Para o "Aurélio", mentir é "afirmar coisa que se sabe ser contrária à verdade; dizer mentira(s)"; para o "Michaelis", é "dizer mentiras, negar o que se sabe ser verdade, proferir como verdadeiro o que é falso".  
 
E tudo isso são verdades.  
 
Não sei por quê, vem-me à mente o diálogo exemplar de Alice, aquela do País das Maravilhas, em seu célebre encontro com o enigmático Humpty Dumpty. Deixemos que nos relate o trecho o próprio Lewis Carrol:  
 
"- Não sei bem o que o senhor entende por `glória` - disse Alice.  
 
Humpty Dumpty sorriu com desdém. - Claro que você não sabe, até eu lhe dizer. O que quero dizer é: `eis aí um argumento arrasador para você.`  
 
- Mas `glória` não significa `um argumento arrasador` - objetou Alice.  
- Quando uso uma palavra - disse Humpty Dumpty em tom escarninho - ela significa exatamente aquilo que eu quero que signifique... nem mais nem menos.  
- A questão - ponderou Alice - é saber se o senhor pode fazer as palavras dizerem coisas diferentes.  
- A questão - replicou Humpty Dumpty - é saber quem manda. É só isso."  
Assim falou o reverendo Charles Lutwidge Dodgson em seu Através do espelho e o que Alice encontrou lá. Bom para refletir.  
 
Curioso, sabe-me, a mim, é exista um dia, e em quase o mundo todo, especialmente dedicado para a celebração da mentira. Afinal, não o há, um, para a verdade - mentira? Nem se diga que o serão, para verdade, os todos demais: pois, não existe apenas um, quero dizer, um único dia, somente dedicado para o agradar de nossas próprias mamãezinhas?  
 
Em verdade, em verdade vos digo, a verdade é que um Dia da Verdade nos seria, afinal, a todos, e todas, claro, verdadeiramente insuportável. Mais facilmente sobrevivemos a uma enorme onda de mentiras que a uma pequena gota de verdades. E, logicamente, uma mentira bem mentirosa assusta-nos bem menos do que o faz uma verdade bem verdadeira.  
 
De mais a mais, tudo é aparências, "vanitas vanitatum". Se algum duvide, alguma, deleite-se com o soneto "Especiarmente...", abaixo, publicado por Fontoura Costa em seu Matutices, e depois me diga, se puder, onde se mentiu, onde o poeta é vero:  
 
 
- Ant`onte o desinxavido 
Do Istevo de nhá Lorença 
Me agarantiu que ele pensa 
Que eu sô munto parecido 
 
C`o seu cumpadre nhô Proença 
(Que inda é meu desconhecido). 
O que acha mecê, nhô Lido: 
Nóis tem, mermo, parecença? 
 
- Ara! Se tênhum, nhô Adão! 
Mecê e cumpadre, junto, 
Ficum que nem dois ermão. 
 
Ói: mecês dois (pode crê) 
Se parece, mermo, munto. 
Especiarmente mecê! 
 
 
Uma poesia 
 
 
Dança  
 
 
a bailarinda embailarava a vista 
embailoirava inda embailatriz 
embailoarava linda empolatriz 
empoleirada bailarina avista 
 
ah bairalinda que embailhara ainda 
embailhourando linda embailarada 
embailhara aí da emperfilhada 
impérfeita bailina embailharinda 
 
e os cascos secos como castanholas 
e os cachos pecos colo de gazela 
e os cacos mesmos quais caraminholas 
 
e os mesmos machos moucos de gozá-la 
ah bailarinda que embailara a vinda 
embailhara ainda a minha vida 
 
 
Paulo Tortello é Poeta. 
Fone/Fax: (15) 231-8218. 
E-mail: tortello@zaz.com.br  


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