Maior parte do repertório traz canções gravadas em 1958 e 59, antes de a `batida diferente` se impor de vez 
 
Antonio Carlos Jobim nunca assumiu plenamente sua condição de compositor de bossa nova. Ou melhor, só aceitou o rótulo quando ele lhe abriu como a outros artistas brasileiros, as portas do mercado internacional, sobretudo dos Estados Unidos. O maestro sempre se considerou um compositor de samba, modernizado, harmonicamente sofisticado, de pouca ênfase no ritmo, ou seja, mais para canção do que para telecoteco, mas ainda é samba. 
 
Foi só para entrar por aquela porta que Tom acabou adotando a batida diferente lançada por João Gilberto ao gravar seu primeiro álbum nos States. E pelo mesmo motivo trocaria o piano pelo violão (mantendo a mesma batida) quando esta fosse quase uma exigência de Frank Sinatra para que fizessem juntos o histórico disco de 1967. 
 
Selo de Curitiba reúne o Tom Jobim inicial 
 
Isso posto, deve ser ressaltada a importância de "Tom Jobim - Raros compassos", o mais recente lançamento do selo curitibano Revivendo, de Leon Barg. São três CDs com 75 gravações, cobrindo um período que vai de 1956 a 1982, mas a maioria vem de 1958 e 1959, os dois anos chaves do nascimento da bossa nova. 
 
Uma caixa importante para os fãs - há 12 canções que jamais foram regravadas - e mais ainda para os eventuais estudiosos da obra jobiniana. Afinal, o repertório (que não repete nenhuma das faixas de "Meus primeiros passos e compassos", coletânea anteriormente dedicada ao compositor também lançada pelo selo Revivendo) oferece interessante matéria-prima para que se revisite esse Jobim pré-bossa nova. 
 
Das 75 faixas, apenas quatro contam com a tal batida diferente. Entre as demais, há sambões, boleros, fox-trots, sotaques sertanejos, marchas, baladas e até lounge music. É verdade que Jobim nada tem a ver com certos tratamentos dados às suas músicas. "A felicidade", por exemplo, merece três versões, todas equivocadas, todas despindo-a da delicadeza já sugerida pelos versos de Vinícius de Moraes e devidamente respeitada pelo cantor Agostinho dos Santos no registro original. Herivelto Martins, por exemplo, a transforma numa barulhenta escola de samba, Lely Figueiró a confunde com ópera, enquanto Severino Araújo a faz suingada, dançante. 
 
Também deve-se livrar Jobim do pecado cometido pelas duas moças que deformam "Eu não existo sem você" e "Eu sei que vou te amar", em nome de sua devoção às rancheiras e às terças caipiras. E Vicente Celestino cantando "Se todos fossem iguais a você" deve, no mínimo, ter deixado Tom e Vinícius perplexos. 
 
Os estudiosos terão matéria-prima para analisar tudo isso e, também, o lado realmente Jobim fora da bossa nova. Poderá constatar que o compositor de peças orquestrais mais ambiciosas - sem compromisso com bossas velhas ou novas, mas num toque só seu, a ser aperfeiçoado nas parcerias com o arranjador alemão Claus Ogerman - já era antecipado em 1958 pelos três temas executados pela orquestra de Leo Peracchi: "Coffee delight", "Latin Manhattan" e Moonlight Daiquiri. 
 
Registro de um tempo de cantores com voz 
 
Ainda para os estudiosos, os três CDs ajudam a lembrar o número expressivo de cantores e cantoras que foram saindo de cena, ao longo da década de 60, quando passou a ser feito ter voz (os críticos confundiam "ter voz" com cultuar o dó-de-peito) e simplesmente obrigatório seguir os passos do estilo fundado por João Gilberto. Infelizmente, o ideal - que eram os dois estilos coexistirem, o intimista e o da voz "para fora"- não aconteceu. E muito intérprete de categoria foi obrigado a procurar outra profissão. 
 
(João Máximo) 
O Globo. Segundo Caderno. Sábado 13/05/2000.Pág.05