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Crônica de Sorocaba - Fique Frio/poema da Necessidade

Crônica de Sorocaba 
 
Fique frio 
 
ACOMPANHEI, horrorizado, o noticiário assustador a respeito do Verão europeu, seus deles termômetros explodindo a mais de quarenta e muitos graus - coisa, mesmo, de apavorar heliólatras.  
 
Deus nos livrasse! 
 
Vem aí o nosso Verão suarento de sempre, que nem não precisa de ser fora do comum para ultrapassar os quarenta - que é quando, dizem, a vida começa (já nem me recordo...). Que digo? O que se aproxima é nossa escaldante Primavera à brasileira, com aquele mesmo calor abafado que nos asfixia é o ano inteiro, isto é o que é.  
 
Abafado e afobado. 
 
Repare a leitora atenta, o leitor atencioso: as temperaturas altas são amigas inseparáveis das bulhas sem fim. Apurem-se as orelhas num desses dias deliciosos de muito frio, como os que vem fazendo, e, depois, num dia daqueles insuportavelmente quentes, de que temos ao ano às centenas, faça-se o mesmo, e ao mesmo horário, e escute-se... escute... (...o frio... é silente...). Diria, mesmo, o frio civiliza.  
 
Os europeus, que, quando pontilharam a costa africana e descobriram a América do Sul, romperam as barreiras que os separavam das "partes incendiadas do mundo", encantaram-se com as terras onde fazia "Verão o ano inteiro".  
 
Na Europa, a oposição entre as estações demarca as vidas com rigor implacável: o Outono é Outono, e as árvores despem-se e as calçadas cobrem-se e o mundo é cinzento. E assim por diante. Não em nossas plagas, claro, onde, daqui a uns poucos tantos dias, as temperaturas normais do Inverno tropical trará de volta as camisetas e as bermudas, e a (reconheço) saudável pouca roupa. De fato, o fato é que o Inverno, o Outono europeus têm, mesmo, o tempo enfarruscado. E a Primavera tem, realmente, flores, e o Verão tem o Sol que só o Verão o tem igual, por lá. Daí seu conceito deles do que é ter-se "bom" tempo, "mau" tempo, e apesar do calor assassino desta temporada. Não digo de tempestades e cataclismos demais. Mas porém, soa esquizofrênico ouvir e entender as "mocinhas do tempo", no Brasil brasileiro em que sobrevivemos, lamentar, na TV, o tempo chuvoso no Nordeste ressequido. Ou sorrir anunciando o tempo "bom" de temperaturas de fritar coquinhos que nos fazem insones e irritadiços, e franzir as testinhas para anunciar o "mau" tempo do friozinho gostoso que nos aproxima e aconchega (quando chega, claro). Mais uma demonstração científica de o quanto tudo é verdadeiramente relativo (e até mesmo isto daqui, decerto).  
 
Da relatividade das coisas nada foge - nada. Que nem: enquanto que eu escrevo, tem candidatos fazendo as contas do número de votos com que vai ganhar. Sim, porque todo candidato sabe que irá vencer. Ou crê nisso ou abdica da própria campanha. Certa vez, caí na asneira de perguntar a um candidato à Prefeitura se ele não sabia que não iria ganhar. Não só ele não sabia como continuou a não enxergar nem mesmo depois que perdeu. É a vida. Não perguntei por mal. A falar toda a verdade, ou quase toda, perguntei por vê-lo vibrar tanto, como se realmente não soubesse que era o candidato da derrota. Perguntei porque senti pena dele. Estávamos os dois a sós, na sala. Mesmo assim, até hoje ele me detesta do mais fundo de sua almazinha. Certo estava era São João da Cruz, que segredou: "É para mim o meu segredo". Mas, na época, eu não havia ainda lido São João da Cruz e não vi nada de mais e nem de menos em minha pergunta. E, porém, nem sequer depois, anos mais tarde, quando o mito Ulisses Guimarães foi anticandidato, tendo por vice o agora recém-falecido macróbio Barbosa Lima Sobrinho, nem mesmo assim não me perdoou a mim aquele triste candidato daquela candidatura triste. A tal ponto se amam os candidatos nas candidaturas a que se candidatam.  
 
Pois, dizia, neste preciso instante, calculam seus cálculos os candidatos, e sorriem ao ver que a mídia atesta expressivo crescimento do eleitorado. Será isso realmente bom? Será um mal? E por quê?  
 
Há quem considere somar, Sorocaba, seus mais de quinhentos mil habitantes. Uns gritam seiscentos. Ora, um dia, nas mãos do Capitão Baltasar, fomos lugarejo, povoado, depois, vila, aí, uma cidade, que - até quando se deve desejar cresça e cresça a que apareça?  
 
Sorocaba não é grande: é enorme. São Paulo é que é uma excrescência absurda. Não serve de termo de comparação. A maioria dos municípios brasileiros tem menos de 100 mil habitantes. Nem tamanho é documento, como disse o seu José da mercearia olhando os 80 mil metros quadrados do recém-inaugurado "Extra". O povo foi ver os ricos de perto. Babaram de vê-los chegar pelo ar, descendo dos céus como deuses modernos. O espocar dos rojões cobriu toda a cidade, mais altos e mais numerosos que os de qualquer facção política. Talvez, afinal, Sorocaba não seja assim tão grande. Grande é Fernando Pessoa, que escreveu:  
 
"Grande é a poesia, a bondade e as danças... 
Mas o melhor do mundo são as crianças, 
Flores, música, o luar, e o Sol, que peca 
Só quando, em vez de criar, seca."  
 
A citação é de "Liberdade", poema em que também presta, o poeta lusitano, seu culto ao que eu chamo de tempo realmente bom ("Quanto é melhor, quando há bruma,/Esperar por D. Sebastião,/Quer venha ou não!") e que conclui:  
 
"O mais que isto 
É Jesus Cristo, 
Que não sabia nada de finanças 
Nem consta que tivesse biblioteca..."  
 
Melhor aproveitar o Inverno antes que acabe, como uma liquidação de Verão, porque o Verão vem que vem quente, como uma liquidação de Inverno. As eleições não são em outubro?  
 
Um Poema  
 
Poema da Necessidade 
 
Antes de tudo é necessário que haja 
a poesia 
e que ela exista no poema 
como o rugido  
na onda 
- rimas ambas 
ambas num movimento perpétuo e 
renovado 
isso antes de tudo é necessário  
 
Depois de tudo é necessário que tenha 
havido tudo 
e tudo quanto tenha havido 
haja sido inteiro 
e todo todo tenha sido único 
imutável como a necessidade 
de vê-lo num poema 
que remanesce 
inteira 
depois de tudo  
 
E em tudo haja a precisão primeira 
incontornável pulsão 
grito de ai 
do amor 
antes do canto do amor 
antes e depois 
de tudo 
é necessário  
 
Paulo Tortello é Poeta. 
Fone/Fax: (15) 231-8218,  
E-mail: tortello@terra.com.br  
 


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