Crônica de Sorocaba - Perigos
Crônica de Sorocaba
Perigos
NOS já muitos idos, muito, dos há muito idos, muitos, dos dias velhos de minha velha infância, lembro-me de mim, feliz, nos períodos das campanhas de eleição, catando os papeluchos que os aviões soltavam por sobre os telhados e quintais. Como qualquer outra atividade predatória em seu início, esse era um costume que nada de mau não parecia oferecer à comunidade. Era como soltar um balão, o que, na época, era como empinar um papagaio, que, então, era como andar de bicicleta então. E o fato é que aqueles papéis impressos com, geralmente, uma muito bem engendrada caricatura do candidato eram disputados pela gurizada em corridas e alvoroço. Hoje, nem pedalar não se pedala como se pedalava. Há códigos e regulamentos para andarem de bicicletas, os quem a tanto ainda se atrevem ou disto carecem, costurando pelos descaminhos das veredas no espaço cada vez menor entre os automóveis.
"O tempora! O mores!"
Pipas de fim de século, erguidas em linhas mortais, dilaceram carnes inocentes e são antes armas afiadas que brincos infantis; nos tempos de meus tempos, o máximo que um papagaio destes poderia fazer era enroscar-se na fiação elétrica, e mas, parece-nos, não causavam as tragédias de agora. Como isso é possível? É a história da serpente enrengelada. O homem tratou-a, e ela, aquecida, picou-o e ele morreu. É como os balões, que, antes, parece que apenas subiam, subiam, multicores de luz, e parece-nos que somente no tempo de nosso tempo é que descem e queimam a vida, inclementes.
E o fato, de fato, é que tudo isso são, em nossa época atual, coisas proibidas, como o lança-perfume e a propaganda de cigarros ou beijar no "shopping" em Sorocaba. Não é menos verdadeiro: pedalar sempre pôde ser fatal. Pipas anunciavam a vinda dos lotes de drogas, como, ainda hoje, denunciam a chegada da polícia. E o balão sempre incendiou, conquanto se ergueu, em torno do assunto, uma cortina de fumaça... Coisas de caipiras, como os que, sorocabanos, aniversariamos. De Sorocaba, sabe-se haver sido elevada à Vila em um 3 de março; mas, optou-se pelo dia de Nossa Senhora para o dos festejos natalícios da urbe. Ora, tudo é um motivo, afinal.
Nos meus tempos de eu criança, a orgia da propaganda eleitoral parecia-me pouco diferente da dos dias das festanças carnavalescas - quando os salões transbordavam e as ruas se enchiam de serpentinas e confetes. Nas eleições, perdia-se, decerto, em coloridos, mas os confetes políticos provinham das nuvens, choviam do céu, vinham bailando uma dança azul perante nossos extasiados olhos de crianças. Ninguém de nós meninos não imaginava o que de ruim naquilo poderia haver oculto. Ninguém nunca imagina, no começo de nada, o que aquele tudo embutido vai florescer. Quem não acha encantos no filhote de alguma, qualquer uma, crescida fera assassina? Por um exemplo, assim: o bicho humano. Garanto ao leitor descrente, a leitora incrédula, até mesmo o ministro Malan deve de ter sido um amor em criancinha. Que nem: beijar a mão, acho que pode, uns pensam que se deve; no rosto, já é assédio; na boca, sexo oral. Tudo, nos seus começos, são como os quentes perigos das regélidas serpentes, que acudimos.
Talvez, é pena, os fatos dêem razão àquele juiz, nos nordestes, que proibiu notícia política. "Como quem fala mente, melhor ninguém falar" - terá raciocinado. Matar a cobra no ninho. A gente pensa sempre que ela não vai picar.
Quando eu era criança, pensava que a morte era das coisas que somente aconteciam com gentes de famílias distantes. E mas porém, e logo, a noção do fim da vida insinuou-se-me com insídia. Morreu-me a minha avó Maria, mãe de meu pai. Pela primeira vez, na vida, vi meu pai chorar. Era um pranto circunspecto e silente. Chorou-o íntimo. Flagrei-o. Parecia não me ver. O velório foi realizado em sua casa dela, o féretro na sala. Antes que se fechasse, ergueram-me, creio que meu pai, para tomar-lhe a dela bênção derradeira. Tinha, minha avó, as mãos cruzadas, e talvez houvesse um terço. Beijei-lhe a pele fria, e o contato da morte em meus lábios selou nosso último encontro. Depois, em casa, sozinho, entoava, mentalmente, uma melopéia secreta: "Vovó Maria morreu..." - e confortava-me, mais, ou menos. Um frio. Na boca. Do estômago?
Como na história da serpente, mas, ao contrário, nos agoras, passou-me o frio da morte, seja o do estômago ou na boca. Muito tempo mais tarde, quando me morreu meu pai, já sabíamos, e os queridos, o quanto a luta reside é nas fadigas da vida, jamais nos descansos da morte. "É preciso estar atento e forte" - cantou a melodia.
As propagandas eleitorais não mais caem dos céus, que é proibido - mas, jamais, de verdade, caíram do céu, vieram sempre dos pesados e sopesados cofres abarrotados de que ninguém não tem conhecimento, mas de que todo o mundo sabe.
"É preciso estar atento...": hoje, como, em verdade, desde que o mundo é mundo, qualquer intenção humana pode esconder uma intenção política, embora nem toda intenção política seja necessariamente humanitária. "...e forte": as eleições vêm aí.
A discriminação na gramática - "o" cobra é o craque; "a" cobra, o bicho.
Do homem na política, diz-se serem cobras.
No feminino.
Um Poema
Soneto Araçoiaba
Recorta-se a cidade. Um horizonte verde
a pouco e pouco apouca. A simetria exata
há muito que o suplanta. A linha dura escapa
da linha do horizonte. E o verde o verde perde.
Vidraça da janela. E nela outras janelas.
E o morro do Ipanema esconde atrás do morro
do branco do edifício um tempo sem socorro.
Janelas na vidraça. E outras janelas nelas.
Perfis de telha baixa e as gentes que recolhe.
São gentes de outra guarda as que essa telha acolhe.
Que esconde a cor do morro e a linha da paisagem,
recurva silhueta (a curva é a mensagem).
Por causa desse morro a gente é diferente:
a gente esconde o morro, o morro esconde a gente.
Paulo Tortello é Poeta.
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