Memória da voz 
 
Simone Ribeiro  
 
Grandes empreendimentos, muitas vezes, começam timidamente. E foi assim que o gosto de colecionar discos levou o pernambucano Leon Barg a tornar-se dono de um pequeno império chamado Revivendo, selo fonográfico que fundou há 15 anos, em Curitiba. A iniciativa pôs ao alcance dos nostálgicos e das novas gerações o melhor da MPB do passado, do “Rei da Voz” Francisco Alves ao desconhecido baiano Victor Bacellar, apadrinhado pelo compositor conterrâneo Assis Valente, hoje pastor da Igreja Universal, no Rio. Há uma semana, Barg lançou em Recife seis CDs do extraordinário maestro e compositor Nelson Ferreira, pioneiro do frevo, autor de valsas, boleros e toadas, gravado por Nelson Gonçalves, e cujo centenário de nascimento se completa este ano.  
 
No rápido giro pelo Nordeste, o criador da Revivendo visitou a Bahia, onde se concentram muitos dos admiradores do seu valoroso trabalho, como o garimpeiro de sons Paquito, o diretor do filme Samba Riachão, Jorge Alfredo, o fotógrafo Robinson Roberto e a matriarca da família Veloso, Dona Canô. O filho Caetano é outro “fanático” assumido. As cantoras Marisa Monte e Nana Caymmi também estão entre as clientes fiéis do catálogo de raridades que soma mais de 180 títulos em CD: Lupicínio Rodrigues, Ary Barroso, Noel Rosa, Vicente Celestino, Dalva de Oliveira, Orlando Silva, Sylvio Caldas, Carmen Miranda, Aracy de Almeida, Luiz Gonzaga, Gastão Formenti, Carlos Galhardo, Dolores Duran, Ângela Maria, Cauby Peixoto e outros. A maioria tem como base original o velho disco 78 rotações, que durou até meados dos anos 60.  
 
Leon Barg começou a comprar os primeiros discos em 1944, ainda adolescente, o que lhe permite dizer sem cerimônia: “Considero a minha discoteca uma das mais perfeitas do País em organização e qualidade. É uma vaidade honesta”. São mais de 120 mil títulos originais, conservados na própria casa, ao lado de fotos e capas decorando as paredes. O empresário dispõe ainda de 200 mil duplicatas e triplicatas. Sobrevivendo com oito funcionários, dois deles suas filhas, sem patrocínio, a Revivendo não é um selo comercial. Lança discos com tiragens de no máximo mil exemplares e investe no teor artístico-cultural. Os encartes vêm acompanhados de discografia, letras das canções e história da vida do artista: Francisco Alves morreu aos 54 anos, num trágico acidente na Rodovia Presidente Dutra, sentido São Paulo-Rio, e Vicente Celestino tornou-se conhecido em todo o Brasil como cantor e ator graças ao filme O Ébrio. Fatos inesquecíveis.  
 
A era de ouro do rádio não é a única representada pelo selo fonográfico. MPB recente e ídolos internacionais como a portuguesa Amália Rodrigues, o espanhol Gregorio Barrios e o argentino Carlos Gardel também fazem parte da coleção. Do RPM para o LP e para o CD. No seu esforço de resgatar do esquecimento figuras de alto valor para a cultura brasileira, Leon Barg não abre mão da tecnologia. Ele próprio manuseia os programas de computador que devolvem a limpidez da voz e dos sons do passado, afastando os chiados e imperfeições. Para esse artesão, não existem estrelas menores. “A música no passado não oferecia estabilidade financeira. Muitas cantoras boas abandonaram a carreira para se tornar donas-de-casa”, justifica. Sônia Carvalho e Elisinha Coelho saíram de cena assim. O sucesso não estava vinculado apenas à voz, mas à estampa e às bênçãos de uma mídia poderosa, a Rádio Nacional, similar da Globo nos anos 40 e 50.  
 
Com Francisco Alves, Leon Barg deu início à aventura musical da Revivendo. Os campeões de vendas nesses 15 anos de existência são Vicente Celestino e Dalva de Oliveira. Barg saiu em 1952 do Recife, atraído por uma oferta de emprego em Porto Alegre. Acabou se estabelecendo em Curitiba, onde trabalhou no comércio de instrumentos musicais. Na Casa Sartori, loja que dispunha de uma seção de discos, nasceu o sonho empresarial e cultural. Era comum ouvir pessoas que se ressentiam da falta da MPB antiga: serestas, choros, marchinhas de Carnaval, valsas, boleros etc. A aposta deu muito certo.  
 
Simone Ribeiro é jornalista; integrante da equipe de A TARDE Cultural.