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Um Patriarca do Frevo
Um patriarca do frevo
Seis CDs com gravações feitas entre 1923 e 1986 sintetizam a carreira de Nelson Ferreira
O mangue beat não foi a única onda musical irradiada de Pernambuco para o mundo, como dizia a principal emissora de rádio local, a Jornal do Commércio do Recife. Inicialmente rotulado marcha nortista e depois marcha carnavalesca pernambucana, o frevo não rebocou no passo apenas multidões regionais. Assim como registravam pontualmente no carnaval marchinhas e sambas, alguns dos principais cantores da era do rádio cultuavam o gênero como a dama da Central Aracy de Almeida, o pé-de-valsa Carlos Galhardo e mais Almirante, Dircinha Batista, Francisco Alves, Nelson Gonçalves, Marlene, Violeta Cavalvanti, Gilberto Alves, Joel & Gaúcho. Todos eles e mais astros locais como Claudionor Germano, Minona Carneiro, Bloco Batutas de São José (no megaclássico Evocação, que tomou a folia carioca de 1957), Augusto Calheiros, Expedito Baracho, José Orlando foram escalados no pacote de seis CDs do selo Revivendo (da série Carnaval, sua história, sua glória) em homenagem ao centenário de nascimento de um dos dois (o outro foi Capiba) patriarcas do frevo, Nelson (Heráclito Alves) Ferreira (1902-1976). Descontando o exagero de músicas repetidas com outros intérpretes nas 147 faixas, Nelson Ferreira - 100 anos, reunindo gravações de 1923 a 1986, junta documento, folia e diversão em doses quase iguais.
O registro pioneiro é do cantor Bahiano, o mesmo do samba inaugural, Pelo telefone, que berra (numa época de tecnologia ainda indigente) para a lendária Casa Edison Borboleta não é ave, rubricada apenas como ``marcha``, embora seja o frevo canção fundador. Em 1928, o instrumental Não puxa maroca pela Orquestra Victor Brasileira ganha o carimbo ``marcha nortista``, enquanto A canoa virou, na voz do cantor Augusto Calheiros, era batizado como ``marcha canção satírica``. Tudo porque a síntese marcial do frevo com seus metais em brasa procede da miscigenação de dobrados, polcas e maxixes além do balé da capoeira, alinhava o historiador Samuel Valente no encarte. O insinuante Carrapato cum tosse e mais Vamos chorá, nega?, ambos do carnaval de 1932, sinalizam através do diálogo de metais e palhetas a linguagem peculiar do estilo. A adesão dos grandes ídolos ao novo formato não tarda. A voz anasalada de Aracy de Almeida, escolhida por Noel Rosa como ideal para o samba, traça Já faz um ano (1935), Veneza americana (1938, por decreto de 1969, ``a canção oficial do Recife``), Nada faz mal (outra de 1938). Também da turma de Noel, o Bando dos Tangarás, Alvinho gravou A canoa afundou (1931), Carnavá vortô (1932) e Almirante Minha fantasia, Vamos começar de novo (ambos de 1940) e Qual será o score, meu bem? (1941).
Francisco Alves (com o pseudônimo de Chico Viola) na melindrosa Didi (1930), Dircinha Batista em Não é vantagem (1940), Nelson Gonçalves (irreconhecível) em Não sei porquê (1947) e Marlene na hilária Ai, como sufro! (que zoava com o bordão da rumbeira cubana Cuquita Carballo) também jogaram confetes na folia pernambucana. Mas o mais assíduo na frevança é Carlos Galhardo, a voz empostada das valsas românticas. Ele canta entre outras Corre Faustina! (de 1938, resposta a um sucesso de Almirante de 1936), O vento levou... (1940, alusão ao filme), Bye, bye, my baby (1943, crítica à influência ianque), Amar e nada mais (1944), Lá na ponte da vinhaça (1945). Entre os da região, além da figura dominante de Claudionor Germano há uma rara aparição do rei da embolada Minona Carneiro (Dedé que na letra oferece um ``arranha-chão`` à amada, em 1930) e outra como cantor do compositor Fernando (pai de Edu) Lobo em Pare, olhe escute... e goste! (1935). O frevo instrumental é o lado mais ardente do pacote em desempenhos como os das orquestras Tamandaré (Tarado), Zaccarias (Gostosinho, Gostosura) Raul de Barros (Gostosão), Fon Fon (Já vai tarde) José Meneses (Qual é o tom?) e a do próprio Nelson (Isquenta muié, Armstrong na Apolo frevo), que também pode ser ouvido cantando ao piano em Quanto é bom envelhecer e Na hora H... piano. Outra curiosidade é o bolerista cubano Bienvenido Granda (matriz de Waldick Soriano) rasgando-se em Yo quiero el frevo (1960).
O poder de fogo do gênero inclui patrocínios no prefácio de algumas músicas como o da Tecelagem de Seda e Algodão de Pernambuco para O passo do caroá (uma marca de brim da empresa) no carnaval de 1941, e da Secundino & Cia para o de 1945, Que matá papai oião?, sátira à derrota de Hitler. E mais incontáveis jingles de campanha política para candidatos como João Cleofas, Agamenon Magalhães, Cid Sampaio, Cordeiro de Farias, Miguel Arraes e até o adesista Ame-o ou deixe-o, gravado pela Orquestra de Nelson Ferreira em plena era Médici, em 1971. Dialogando com a Jovem Guarda (Frev-iê-iê) ou com o Bat Masterson das série de TV (O homem da bengala), N.F., que iniciou-se como autor aos 14 anos na valsa Vitória, encomendada pela Companhia de Seguros Vitalícia Pernambucana, não rejeitava temas. E apostava no moto-contínuo vital do frevo: ``Eu passo, tu passas, ele passa, todos nós passamos a cair no passo``.
10/SET/2002
Tárik de Souza
Crítico do JB
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