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Plagiotrópico Jobim

PLAGIOTRÓPICO JOBIM 
 
Caixa com três CDs reacende discussão sobre as fontes musicais do compositor 
 
Desde que começou a fazer sucesso depois da eclosão da Bossa Nova em 1959, a música do compositor carioca Tom Jobim (1927-1994) se tornou arena de insinuações e até acusações de plágio. Sua produção é, talvez, a que conta na MPB com mais títulos apontados como plágios ou pelo menos, inspirações, citações. Ao mesmo tempo, o método "plagiotrópico" - como diriam os poetas concretos - gerou algumas grandes e incontestáveis canções. O caso intriga, já que Tom se converteu em vulto da pátria; hoje é chamado "maestro", "maior compositor brasileiro" e comparado até a George Gershwin. Virou um deus (existem muitos eleitos como tal na MPB, alguns deles ainda em vida), embora dependesse de arranjadores e nunca tenha escrito nada do porte da ópera "Porgy & Bess", de Gershwin. A recém-lançada caixa de CDs do selo Revivendo "Tom Jobim - Raros Compassos", em três volumes, reaviva a discussão, porque ali estão algumas das músicas estigmatizadas; ela igualmente enseja a análise do caráter da inspiração jobiniana e de como os cantores a abordaram. Como diz o título, são registros raros fora de catálogo, a maior parte deles realizada entre os anos de 1956 e 1964, precisamente no período em que a Bossa Nova foi inventada e se disseminou pelo mundo. Jobim forneceu a melhor parte da trilha sonora da época. 
 
Conforme mostra a coletânea, porém, mais do que um compositor ortodoxamente bossa-novista, ele parece integrado ao estilo brasileiro "pré-moderno", tanto pela inspiração no bolero, na música erudita e nos gêneros tradicionais, como pela maneira como acompanha alguns cantores em certas faixas da coletânea. O texto do livreto dos discos, escrito pelo pesquisador Abel Cardoso Jr. (que preferiu não assiná-lo por não se considerar um especialista em Bossa Nova), informa que Jobim acompanhou ao piano a cantora sertaneja Vanja Orico nos sambas-canções "Sucedeu Assim" e "Eu não Existo sem Você" (do selo Sinter, consta "Antônio Carlos e seu Conjunto"). À frente de sua orquestra, apresentou um arranjo classicoso para "Frase Perdida", gravada por Agostinho dos Santos em abril de 1957. 
 
As 76 músicas interpretadas por 53 cantores de "Raros Compassos" comprovam que Jobim forneceu conteúdo para a livre invenção dos intérpretes, mesmo a dos mais desconhecidos. Os que pertenciam à velha geração "leram" as composições da maneira tradicionalista. Os mais modernos se ocuparam de cantá-las de um jeito moderno para o início dos anos 60. Daí ser lícito observar que a música de Jobim não enfrenta o problema da forma como instrumento de progresso estético. E a forma que a consagrou, o estilo Bossa Nova, não fazia parte essencial dela. Foi João Gilberto, um dos intérpretes de Jobim (ausente dos três CDs), que formatou o conteúdo jobianiano à sua maneira. O cantor criou um "modus interpretandi" baseado na síncope de voz e violão. Uma operação que pode ser exercida em qualquer espécie de música (e o autor favorito de João sempre foi o conservador e pré-jobiniano Ary Barroso). É possível converter a "Grande Fuga" de Beethoven em BN. Porque Bossa Nova é um modo de interpretar. 
 
Não só João trabalhou nesse sentido de mudança do padrão primitivo da composição. No volume 2 da caixa, ouve-se certa intromissão estilística na versão que a cantora Stellinha Egg realiza de "Só Danço Samba". O selo do disco, lançado em 1964, descreve a música como samba-rancho. O arranjo é provavelmente de Lindolpho Gaya, marido da cantora - morta em 1991, aos 76 anos. A faixa soa paródica, por tornar marcha um samba que fala de samba. O arranjo prefigura "A Banda", lançada dois anos depois por Chico Buarque. Apesar de cantora folclórica, Stellinha sabia manobrar estruturas; rumava para uma abordagem, por assim dizer, pós-moderna. E foi Stellinha (em achado recente do jornalista Ruy Castro) que em 1959 formou com Sylvia Telles a Dupla Mara e Cota para satirizar dois sambas de Jobim, convertendo-os em toadas caipiras: "Eu não Existo Sem Você" e "Eu Sei que Vou te Amar". Stelinha foi a voz subversiva e clownesca da Bossa Nova. 
 
No terreno de forçar limites estilísticos, duas das melhores faixas do álbum triplo são interpretações de um cantor devotado à questão da forma: o carioca Mário reis (1907-1981). Apesar de pertencer em data à velha guarda, ele imprimiu modernidade a dois sambas que Jobim compôs especialmente para ele lançar no LP: "Mário Reis Canta Suas Criações em Hi-Fi" (Odeon), disco de 1960, considerado pela crítica o melhor título daquele ano. Com arranjos de Gaya, o cantor aparece na coletânea a cantar os sambas "Isto Eu Não Faço Não"(letra e música de Jobim) e "O Grande Amor" (Jobim - Vinícius de Moraes). Depois de Mário Reis ter lançado as duas músicas, João Gilberto gravaria a segunda em 1964, seguindo-se um colar de intérpretes - o último deles Olivia Byington, em 1994. Já "Isto Eu Não Faço Não" só recebeu outra gravação 14 anos depois, pela cantora Cristina. Desde os anos 20, Mário Reis cantava com "bossa", como se dizia na época. Esta tinha a ver apenas indiretamente com Jobim e quase nada com o estilo joão-gilbertiano. Para aqueles que costumam zombar da velha guarda, simplesmente porque ela é velha e pronuncia a realidade a seu modo, eis o exemplo de que ela pode renovar linguagens mais jovens (o que seria mais risível, Vicente Celestino cantando "Se todos Fossem Iguais a Você em seu estilo bel-cantante ou se imitasse Chet Baker?). Aluno do compositor Sinhô, Mário Reis foi além de Jobim em termos de abordagem interpretativa: escandiu as palavras como numa fala coloquial, imposto a voz ou reduziu-a ao quase inaudível, de acordo com sua sensibilidade à delicadeza dos ritmos e sua aversão às notas sustentadas e vibratos. Tom o admirava e se inspirou nele para escrever os dois sambas. 
 
O fato é que, com ou sem João Gilberto, com ou sem Mário Reis e La Egg, a dimensão interpretativa nunca resultou importante para Jobim. Essencial para ele foi a harmonia, e a melodia que dela pode ser deduzida; o processo tradicional, enfim, no qual recorrer às fontes do passado é um impulso legítimo. A música de Jobim sempre revolveu a tradição e muitas vezes de maneira explícita. Alguns consideram tal expediente nada mais que plágio. 
 
A questão da clonagem melódico-harmônica que o compositor operou na tradição é um exercício especulativo difícil. Na razão técnica, plágio não passa de uma cópia de oito compassos id6enticos aos de uma composição alheia. Segundo Abel Cardoso Jr., estudioso do assunto, o fenômeno sempre se deu na música popular brasileira. "Com até oito compassos, dá para fazer muita coisa", diz. "Mas é preciso encarar o fato com naturalidade. Às vezes se deve à pressa. No teatro de revista, os compositores copiavam músicas deles próprios, ou recorriam à música erudita. Ary Barroso plagiava, Nássara achava que citar alguns motivos de um tema folclórico ajudava na divulgação da música. Em 1937, a Sociedade Brasileira dos Autores teatrais divulgou uma lista de centenas de plágios de marchas de Carnaval, Ninguém escapou disso." 
 
Tampouco Jobim, o mais citado nesse tipo de aproximação. Cardoso Jr. Lembra a canção "Água do Céu", gravada pela cantora Leny Eversong no LP "Cinco Estrelas Apresentam Inara" (Copacabana, 1956). O motivo folclórico, recolhido pela compositora Inara Simões de Irajá, possui ritmo cadenciado e uma seqüência melódica modal, além da temática ecológica. Tais elementos comparecem transfigurados no clássico "Águas de Março" (1971), de Tom Jobim. Não há dúvida de que o autor se baseou no motivo para criar sua genial canção. Ele se inspirou na letra e no motivo para criar sua genial canção. Ele se inspirou na letra e no motivo melódico, mudando os traços harmônicos (tonalizou-os), e o fez evoluir para uma lógica sonora mais ampla. Mas isso configura plágio? 
 
Os maiores acusadores do compositor foram José Ramos Tinhorão e Antônio Maria. Para o primeiro, Jobim era um plagiador barato de Cole Porter, dos compositores hollywoodianos e do folclore. O segundo publicou - em "O Jornal", em 1963 - um artigo que apontava as fontes de seis canções assinadas por Tom. Arrola Antônio Maria que `Esse teu Olhar" "foi copiado do fundo musical da canção `The Moon is Blue`". Letra e música da canção "Demais" estão em "The End of a Love Affair". O cronista repete a suspeita mais ou menos consagrada de que "Insensatez" tem a mesma harmonia do Prelúdio n.º 4, de Fréderic Chopin. "Love for Sale", para ele, faz a base para "Dindi". "Night and Day" tem sua primeira parte plagiada em "Samba de Uma Nota Só". "E tem mais", dispara o cronista. "O `Eu Sei Que Vou te Amar` foi fartamente inspirado no `Dancing in the Dark`." Com isso Antônio Maria não queria desmerecer o trabalho de seu amigo, a quem considerava tanto, que prometia convidá-lo para ser padrinho do próximo filho que tivesse. Escreveu: "Ótimas pessoas também também se influenciam na música dos outros. E, em certos casos, como dá menos trabalho, copiam direto." 
 
Maldade, não? Mesmo porque caberia uma análise estrutural das canções, algo impossível para Maria. Algumas das canções mencionadas por ele constam do álbum da Revivendo, como "Este Seu Olhar", que, além de Mara e Cota, foi gravada para a Sinter em 1959 pela obscura Vera Lúcia. A igualmente desconhecida Nelly Martins registrou "Insensatez" em 1962 (RCA Victor). "Demais" está ali, na voz, na voz de Pery Ribeiro, no LP Odeon de 1964. Outras músicas se baseiam nos próprios esquemas harmônicos do compositor, como o bolero "Mágoa", cantado por Sylvinha Telles, quase idêntico a "Dindi". E assim ao infinito e além. 
 
O compositor João Donato, que apontou um plágio de Tom na canção "Anos Dourados" (ele teria se baseado num LP de Bossa Nova evangélica dos anos 70), costuma dizer que o compositor bom é o que comete o crime sem deixar vestígios. Ou seja: pode se basear numa certa marcha harmônica ou em um motivo modal folclórico, mas logra apagar os traços de semelhança. É uma clonagem por despiste. E nisto Tom Jobim foi magistral. 
 
(Luís Antônio Giron de São Paulo) 
Gazeta Mercantil. Caderno da Gazeta Mercantil. Sexta-feira, 09 a 11/06/2000. Pág. 03.  
 


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