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Crônica de Sorocaba - Torrente de Paixão

CRÔNICA DE SOROCABA - Torrente de paixão 
 
 
 
"Depois do dia vem noite, 
Depois da noite vem dia 
E depois de ter saudades 
Vêm as saudades que havia."  
 
 
QUADRINHAS é coisa portuguesa, com certeza. Antropófagos, metabolizamo-las, nem acredito haja brasileiro que não tenha escrito alguma uma ao longo da vida. Ou, no menos, lido alguma outra gravada em porta de latrina pública. Vá lá: que tenha, por mínimo, ouvido uma, um dia, recitada por um algum.  
 
Que nem: "Batatinha, quando nasce,/Esparrama pelo chão;/A menina, quando dorme,/Põe a mão no coração". Assim.  
 
Esta me faz lembrar o amigo Aílton José Segura, hoje predicando em Cuiabá, no Mato Grosso, mas que, um dia, a apresentou, melhor dizendo, uma noite. Eram tempos em que o Sorocaba Clube era o clube de Sorocaba e reuníamo-nos ali em saraus lítero-musicais, os jornalistas agrupados na ativa ASI – a Associação Sorocabana de Imprensa. Alguém, ao palco, desmilingüira-se ao declamar um daqueles poemas manjadíssimos ou que, ao menos, desta forma o julgava Aílton, nem me recordo se não era o "A Serra do Rola Moça", pobre Mário, poema não menos belo que o mal chamado "Churrasquinho de Mãe" que o Chico Alves cantava e com que nossa Marcinha Máh ainda encanta, e Segura não titubeou: tomou do microfone e recitou o "Batatinha". Foi um protesto, lá, dele. Dizem que o certo nem é "esparrama", mas "espalha rama". Esparramou.  
 
Mas, o "Batatinha" será talvez um dos grandes sucessos nacionais da parada das quadras populares, se não o maior deles. Quem o poderá dizer? Existem cultores das quadrinhas que se reúnem em irmandades de aficionados. Terão respostas para essa e outras perguntas acerca de trovas, como a que me dirigiu o Paulo Betti em sua coluna no "Cruzeiro do Sul", indagando-me do autor de: "Saudade, palavra doce/Que traduz tanto amargor;/Saudade é como se fosse/Espinho cheirando a flor".  
 
Ignoro a resposta.  
 
Quadrinhas, de tão populares, algumas há cuja autoria se perde no imemorial das consciências e inconsciências. (Já é uma desculpa, e, além do mais, é uma desculpa que é boa.) E, muito mais se perde, de fato, se a quadra fala de um tema tão íntimo de nosso idioma como é o da saudade.  
 
Saudade é coisa portuguesa? Com certeza? Parece devermos a Dom Duarte, rei português no século XV, a idéia de que nosso substantivo "saudade" é intraduzível. Em sua obra "Leal Conselheiro", o bondoso monarca assim define saudade: "um sentido do coração que vem da sensualidade, e não da razão, e faz sentir às vezes os sentidos da tristeza e do nojo". E observa, arguto: "E outros vêm daquelas cousas que a homem praz que sejam, e alguns com tal lembrança que traz prazer e não pena". Decerto. Logo após, segue-se o parecer afamado: "E porém me parece este nome de saudade tão próprio, que o Latim nem outra linguagem que eu saiba não é pera tal sentido semelhante".  
 
Isto escreveu o consciencioso rei de Portugal em 1438. Já padeciam, então, os peninsulares, das irremediáveis saudades de Dona Inês de Castro, mas isso não explica tudo. Dom Duarte revelou-se pressago extraordinário. Ao longo dos séculos seguintes, a história de Portugal engarregar-se-ia de escrever a palavra saudade nos corações e nas mentes lusitanas a ferro, fogo, e – "why not?" – a sangue, suor e lágrimas. E a do Brasil, também?  
 
Curioso torna-se, a estas alturas tais, conferir o verbete "saudade" no "Diccionario de Lingua Portugueza", de Antonio de Moraes Silva, talvez o primeiro brasileiro a compilar obra do gênero, em 1813, em Lisboa, estando Dom João VI e a família real instalados no Rio de Janeiro. Preservo a ortografia da época, para maior deleite do leitor deleitante ou deleitável leitora: "s.f. A mágoa, que nos causa a ausencia da coisa amada, com o desejo de a ter presente, e tornar a ver: vem de ‘soledade’, alterado em soedade, e em fim saudade: ‘fazer saudades’, olhando para onde está coisa que as causa, cantando, ou dando outras mostras das que padecemos". Na continuidade, abona o autor seu verbete com umas citações imperdíveis: "ir-me por aquele rio ‘fazer saudades’ com o meu cravo." Ou: "se subião à torre olhando (os cativos) contra Espanha, e ‘fazendo saudades’..." Termina com a definição mais prosaica de saudade: "Huma flor roixa, ou vermelha salpicada de branco". Talvez daí advenha o dístico repetido: "Saudade é uma flor roxa/Que nasce no coração dos trouxas". Alguns, em vez de saudade, dizem "O amor". Não deve de haver diferença, por final.  
 
Em verdade, em verdade vos digo, há controvérsias, digo-lhes eu, nessa questão de a palavra "saudade" ser mesmo coisa só nossa. Dizem que, em russo, ‘tosca’ é saudade. E, assim, o alemão "sehnsucht", o árabe "shauck", o armênio "garod", o iugoslavo "jal", o letônio "ilgas", o japonês "natsukashi" e o macedônio "nedôstatok", sem falar em aproximações como o francês "regret" e o italiano "nostalgia", fora o inglês "to miss", no caso, um verbo. O Espanhol, língua que nos é tão próxima, registra apenas "soledad" (solidão), que também lhes serve, a seus falantes, para designar o sentimento que, em Português, denominamos "saudade". Do árabe aportuguesado "chauque" existe, por falar nisso, o inusitado sinônimo "hanim" – onomatopéia que "reproduz a voz da camela que ao chegar ao destino de uma viagem volta a cabeça na direção do filho". Quem diria, camelas fazendo saudades!  
 
Pois há muitas trovinhas cantando e decantando o decantado e cantado sentimento da saudade – portuguesa, brasileira, ou mesmo outra qualquer – esse é que é o fato de fato. Pena-se em todo idioma e até se blatera de dores, como se viu no caso das camelas saudosas – tirante os humanos que deblateram por qualquer coisa, doa-lhes ou nem lhes pique.  
 
A quadrinha com que se abre esta crônica é de autoria de ninguém menos que o consagrado Fernando Pessoa – aqui um testemunho, e insuspeito, de tudo quanto lá dissemos em torno das nostalgias que moram em nossa Língua, lá ou aqui. A com que agora se encerra é, aliás, local: escreveu-a meu mestre o professor Benedicto Cleto, o poeta BeneCleto, o Galo-da-Serra, cantador violeiro legítimo e que se fez em vida e em obra porta-voz de nossas mais radicais raízes. Sendo, como é, do velho e... saudoso Cleto, não poderia deixar de trazer-lhe as marcas: uma é a cadência caipira a mais legítima, a mesma com que nos enfeitiçava a todos quando dizia ou entoava; outra, a verdade de que não se trata de uma quadra, mas de uma sextilha. Ora. Uma sextilha é uma espécie de quadrinha emendada. Um caso em que o esdrúxulo não é estrambótico, nem, como se diz, a emenda pior do que o soneto. Ei-la, a sua dele trova:  
 
 
"Sodade é um parafuso 
que drento da rosca cai. 
Só entra se fô trocendo 
proque bateno não vai. 
Despois que enferruja drento 
nem destroceno não sai".  
 
 
Paulo Tortello é poeta. 
E-mail: tortello@zaz.com.br  
 


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