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A Laursa
A LAURSA
(José Cláudio)
Eu ando atrás de laursa desde que aprendi a andar e até antes, em cima do balcão da loja; deviam me botar para ver: só não digo que conheço desde o bucho da mãe porque iriam tirar brincadeira, urso com a fama que tem. Sempre gostei daquelas suas adernadas, os cordões das franjas de aniagem balançando qual pêlos grossos de juba a cobrir-lhe o corpo todo até os pés dançantes na poeira, igual aos zangbetô que vi no Benin, na África, chamados "guardiães da noite" em língua de branco francês no caso, gardiens de la nuit, e saem também pelas ruas com uma batucada atrás, cobertos de sapé, parecendo aquelas casas típicas de lá afuniladas. Qualquer laursa, por mais improvisada, com a máscara feita de um papelão enrolado feito funil, me faz regredir a menino de Ipojuca, quando acreditava incorporar-se algum espírito selvagem ao homem que eu bem sabia por baixo daquelas vestes, de forma alguma se podendo crer humanos os rosnados abafados saídos pelos buracos da máscara: senão, por que estaria amarrado na corrente, bem seguro pelo caçador, às vezes vestido de soldado de polícia, com culote e perneiras, a espingarda ali pronta a qualquer eventualidade?
Como era bom, naquela época em que não existia poluição sonora, o silêncio ser quebrado pela zuadeira do bloco inteiro no salão da loja do meu pai, o vozeirão rouco do coro masculino cobrindo sanfona, cavaquinho, banjo, violões e até surdo, triângulo e reco-reco, pandeiro:
uma voz: "O povo todo dizia"
todos: "Que a laursa não saía"
uma voz: "A laursa está na rua"
todos: "Com prazer e alegria
Vai chorar
Vai chorar
Nos três dias de Carnavá."
Um belo dia apareceu o urso da Usina Ipojuca para quebrar a integridade monolítica da cidade em que para mim se resumia o mundo:
"Urso operário não é daqui
Urso operário não é daqui
Ele é da Usina e veio se divertir
Mas o povo está dizendo: Você cai daí."
Outro zuadão de que me lembro, no salão da loja, de vozes masculinas, era dessa cantiga não sei se de laursa ou de pastoril-dos-homens:
"Mamãe eu vi
Dorinha no açougue
Mamãe eu vi
Dorinha no açougue
Toda se quebrando
Toda se quebrando"
terminando com a advertência cantada por todos a plenos pulmões:
"Papai tem que dar jeito
Nessa vida de Dorinha!"
Um dos motivos da minha atração pelo carnaval do Recife são as laursas, a esperança de encontrá-las, antes que se acabem:
"Eu vou
E você vai ao meu lado
Fazer o passo no Urso Prateado
Eu vou
E você não diga que não
É o Urso Prateado
Da Federação."
A estrofe seguinte era de uma laursa de Camela, distrito de Ipojuca, a mim ensinada por Américo Soares:
"Esse urso é meu
Esse urso é belo
Esse urso foi pegado
Lá nas matas de castelo."
Referia-se ao Engenho castelo, do mesmo município de Ipojuca.
Mas voltando ao Recife, nunca vi tanto entusiasmo quanto o do cor o feminino dum urso dos Coelhos na frente da Matriz da Boa Vista, confirmando-lhe a qualidade de infringidor do nono mandamento (não deseja a mulher do próximo):
"Eu estou em casa
Pronta a esperar
Com a janela aberta
Pra você poder entrar.
Vai ser legal
Vai ser de lascar
Hoje eu amanheço
Com o Urso Popular."
Embora que, em vez do romântico ursídeo interessado naquilo que vale mais que ouro, dormir de janela aberta atrairá hoje em dia outros espécimens da fauna urbana seduzidos pelo vil metal propriamente dito. Sobre o nono mandamento ainda me ocorrem esses versos, não garanto se ouvidos nessa ordem:
"Lavou limpou
Enche a cara de cana
Enquanto você dorme
O urso está roncando
Debaixo da cama.
Lavou limpou
Tá do jeito que ele gosta
Lavou limpou
Tá do jeito que ele quer
Enquanto o urso come carne de primeira
Deixa os ossos pro coitado do mané."
E aí o recado de algum urso inconformado com a opção da cobiçada:
"Ouvi dizer por aí
Não sei se é verdade ou não
Que você
Depois de mulher velha
Deu pra usar sapatão."
A dona de um urso me explicou que já tinha desistido de sair mas quando chegou o carnaval não resistiu:
"Esse urso foi feito
De última hora
É o Macaça
Que está chegando agora."
Eu também, não tendo mais preparo físico para cair no passo, prometo fazer retiro, mas já sábado de Zé Pereira fico todo todo.
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