No tempo dos capoeiras
No tempo dos capoeiras
Por Leonardo Dantas Silva
Acompanhando o desfile das bandas musicais do Recife desde os primeiros anos da segunda metade do século XIX, o nosso capoeira era, no dizer de Mário Sette, figura obrigatória à frente do conjunto “gingando, piruteando, manobrando cacetes e exibindo navalhas. Faziam passos complicados, dirigiam pilhérias, soltavam assobios agudíssimos, iam de provocação em provocação até que o rolo explodia correndo sangue e ficando os defuntos na rua”.
Beaurepaire Rohan, no seu “Glossário Brasileiro”, publicado na Gazeta Literária, nº 19, Rio de Janeiro, 11 de outubro de 1884, revela que o vocábulo serve para definir “toda a sorte de desordeiro pertencente à ralé do povo. São estes perigosíssimos, por isso que, armados de instrumentos perfurantes, matam a qualquer pessoa inofensiva, só pelo prazer de matar”.
No Recife, segundo Pereira da Costa em seu Folk-Lore Pernambucano (1908), “o nosso capoeira é antes o moleque de frente de música em marcha, armado de cacete, e a desafiar os do partido contrário, que aos vivas de uns, e morras de outros, rompe em hostilidade e trava lutas, de que não raro resultam ferimentos, e até mesmo casos fatais!…”.
Pelo depoimento de Pereira da Costa é nos desfiles das bandas de música do Recife que os capoeiras criaram o ambiente necessário ao exercício e à prática da capoeiragem. Ao contrário da Bahia, onde os capoeiras se reuniam em torno de um conjunto de berimbaus, no Recife eles tiveram como o seu habitat no desfile das bandas militares, do 4º Batalhão de Artilharia e do Corpo da Guarda Nacional, esta última uma organização paramilitar, criada por Lei Imperial de 18 de agosto de 1831, com ramificações em todo o Brasil. Ao primeiro conjunto apelidaram de O Quarto e ao segundo de Espanha, por ser o seu mestre o espanhol Pedro Francisco Garrido. Nos idos de 1856, segundo a mesma fonte, iniciou-se uma rivalidade entre os capoeiras, aficionados dos desfiles daquelas bandas musicais, que armados de cacetes e facas de ponta passaram a se desafiar mutuamente.
Viva o Quarto,
Morra Espanha.
Cabeça seca
É quem apanha.
Apelidava-se de cabeça seca ao elemento escravo, a mais vil das classes sociais de então, acrescentando Pereira da Costa esta informação deveras preciosa para o entendimento das raízes muito distantes do nosso frevo e, por conseguinte, da sua coreografia única e contagiante, o passo: “Levavam os capoeiras partidários de música o seu entusiasmo por certas peças, a ponto de comporem versos apropriados ao canto de alguns passos dobrados (grifo nosso). E estes outros, cantados no trio de um dobrado do 4º Batalhão de Artilharia, a quem denominavam de Banha Cheirosa, dobrado que levava ao delírio os partidários do Quarto, principalmente quando chegava a parte de uma pancada em falso dada pelo bombo no trio da peça…”. (grifo nosso).O Diario de Pernambuco, em de 5 de maio 1860, chama a atenção da polícia para os bandos de capoeiras que acompanhavam os desfiles das bandas de música. O mesmo jornal, em sua edição de 15 de dezembro de 1864, transcreve ofício enviado pelo coronel comandante do Exército, sobre o mesmo tema:
Pelo reprovado costume adotado pelos escravos
nesta cidade, de acompanharem as músicas
militares, dando a uma ou a outra vivas e
morras, apareceram desagradáveis conflitos e
isto há muito. Ontem, o partidista de uma
dessas músicas — Melquíades — preto,
escravo, deu, no meio dos gritos de um e outro
lado, uma facada no pardo, também escravo,
Elias, dizendo-se ser o ofensor partidista de
uma das músicas e ofensor de outra.
Trazendo nas mãos um grosso quirí (bastão de madeira duríssima), ou uma bengala de quina, os nossos capoeiras eram, no dizer de Fernando Pio, in Meu Recife de outrora (1969), “mestres em todos os passos, o corpo inteiro valia como arma ofensiva e defensiva, qualquer dos membros tendo sua atuação definida: com a mão jogavam a tapona, com a perna a trave, o calço, com os pés a rasteira e o temido rabo de arraia”.E seguiam-se os desafios cantados, ao som do dobrado executado pela banda de música — Não venha! / Chapéu de lenha, / partiu, / caiu, / morreu, / fedeu —, acentuando-se quando da execução do dobrado Banha Cheirosa que levava os capoeiras ao delírio:
Quem quiser
Comprar banha cheirosa,
Vá na casa
Do Doutor Feitosa
Quem quiser
Comprar banha de cheiro
Vá na casa
Do Doutor Teixeira
Banha cheirosa
Para o cabelo } bis.
Banha de cheiro
Prô corpo inteiro
No calor desses desfiles e do repertório em uso pelas bandas militares, sediadas no Recife na segunda metade do século XIX, foi sendo gerado o embrião da marcha-carnavalesca pernambucana. Esta, por sua vez, veio dar origem ao nosso frevo, e, de sua forma coreográfica única, o passo, originário dos golpes marciais dessa luta de origem angolana e do gingado dos praticantes da capoeiragem. Nos primeiros anos do século XX, as rivalidades entre às agremiações carnavalescas vieram preocupar as autoridades policiais e responsáveis pelas comissões organizadoras dos carnavais de rua. Por muitas décadas tal preocupação moveu o espírito do carnavalesco pernambucano, preocupado com a segurança dos que dela participavam. Um encontro dos aficionados de um clube com os seguidores do seu rival, era motivo de rixa, pancadaria, tudo no melhor estilo dos tempos em que se digladiavam nas ruas os partidários das bandas rivais, Quarto e Espanha, que veio a servir de embrião ao próprio frevo.
Esses encontros transformavam às ruas em verdadeiros campos de escaramuças e, como conseqüências, enchiam-se de feridos e até mortos, dando trabalho à polícia e serviço extra para os padioleiros encarregados do transporte.Tais conflitos vieram ressuscitar a figura do capoeira. Tal prática era tipificada como crime pelo Código Penal do Império e pelo Código Penal de 1890, tratando, este último, em seu capítulo XIII “Dos vadios e capoeiras”, sendo seus infratores condenados a cumprir penas no presídio da ilha de Fernando de Noronha (Notícias de Fernando de Noronha, 1890).
A letra da lei, porém, não impedia o jornal A Pimenta (nº 28), ao descrever cenas do carnaval de 1901, tecer o seguinte comentário: “um indivíduo, julgando-se muito engraçado, vinha na frente, à moda capoeira”, costume também denunciado, em fevereiro de 1907 pelo Jornal Pequeno: “Fazendo exercícios de capoeiragem vinha ontem, a 1 hora da tarde, em frente ao Clube Carnavalesco Tome Farofa, o indivíduo Anselmo Arcelino Marinho. Este indivíduo com um compasso escalado investiu contra o diretor daquele clube…”. A capoeira, segundo definia Beaurepaire Rohan em 1884 (op. cit.), como uma espécie de jogo atlético, “introduzido pelos africanos, e no qual se exercem, ora por mero divertimento, usando unicamente dos braços, das pernas e da cabeça para subjugar o adversário, e ora esgrimindo cacetes e facas de ponta, d’onde resultam sérios ferimentos e às vezes a morte de um ou de ambos os lutadores”.
Em entrevista ao Diario de Pernambuco de 23 de novembro de 1944, o cronista Osvaldo da Silva Almeida, lembra um desses confrontos entre a onda de foliões seguidores do Clube Lenhadores e os acompanhantes do Clube das Pás, dois tradicionais rivais do nosso carnaval, no Largo da Santa Cruz, quando se tornou necessária a intervenção da cavalaria que, sob o comando do capitão Lemos, veio dissolver a contenda a tiros de revólveres e espaldeiramento nos envolvidos.
Para conter os ânimos foi promovido em 1911 o I Congresso Carnavalesco Pernambucano, presidido pelo próprio Osvaldo Almeida, tendo as reuniões acontecido nas sedes dos Clubes Lenhadores, na Praça Maciel Pinheiro, e o Clube Dezoito de Março, na Rua Marcílio Dias [ Rua Direita], no bairro de São José. Segundo Evandro Rabello, in Suplemento Cultural do Diario Oficial do Estado de Pernambuco, janeiro 1991, tal encontro reuniu “carnavalescos visando acabar com a violência, dar prêmios às melhores agremiações e o presidente pedia aos participantes que levassem apontamentos sobre as agremiações, como história, desenvolvimento e reformas”.
O primeiro clube a aderir ao Congresso foi o Vassourinhas, que desfilou pelas ruas centrais trazendo no estandarte “uma fita branca bordada a ouro com a palavra paz”. Apesar dos esforços dos organizadores, o ranço continuou entre os partidários das agremiações que, a exemplo dos capoeiras, empolgavam-se com a execução de determinados frevos de abafo, cujas notas agudas, geralmente situadas acima do pentagrama, têm por objetivo abafar a orquestra do adversário. Um exemplo que chega aos nossos dias, são as estrofes cantadas pelos partidários do Clube Pão Duro, fundado em 1916, quando da execução de Fogão, composição de Sérgio Lisboa:
Arreda povo!
Pão Duro quer passar
Bola de Ouro vem aí
E Toureiros vai apanhar!
O Clube Carnavalesco Toureiros de Santo Antônio, agremiação fundada em 1914 no bairro daquele nome, congregava em suas hostes gazeteiros, malandros e valentões, sendo temido pelos seus encontros e com lugar constante na crônica policial de então.Apesar das diversas tentativas de apaziguamento, as histórias dos “Carnavais de Sangue” continuaram a povoar o noticiário da imprensa. Os próprios símbolos das agremiações carnavalescas, usados pelos integrantes dos seus cordões — a vassourinha (Vassourinhas), o machado (Lenhadores), as pás cruzadas (Pás) —, eram sustentados por hastes de madeira dura (quirí, pau-ferro, sucupira, etc.) para que, na hora da refrega, viessem a ser transformados em cacetes, arma bastante perigosa para quem sabe dela fazer uso, bem à moda dos capoeiras, faquistas e brabos, figuras obrigatórias naqueles ajuntamentos de foliões rivais.
Conta Otto Prado, em artigo publicado na edição do Diario de Pernambuco de 20 de fevereiro de 1966, que num encontro entre duas agremiações rivais, acontecido no carnaval de 1938 na Ilha do Leite, os dirigentes combinaram que tudo transcorreria na santa paz, “… pois recuar nenhum deles admitiria”. Numa rua estreita ficaram os dois cortejos, frente a frente, os estandartes vieram a se cruzar em sinal de cumprimento e respeito, cada um inclinado frente ao outro, em estilo de reverência, tudo em meio ao mais absoluto silêncio:
Aproximaram-se, os estandartes se
cumprimentaram, as fanfarras emudeceram,
as multidões se cruzavam em silêncio. De
repente, cedendo aos nervos tensos, grita
alguém:
– Fala da mãe desse corno, Zé!
Foi à ordem de avançar, ressuscitando os ominosos tempos dos carnavais de sangue.
* Leonardo Dantas Silva, jornalista, escritor, autor do livro Carnaval do Recife, Fundação de Cultura Cidade do Recife, 2000. 322 p. ilustrado
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