Frevo no Romance
O mais antigo registro do vocábulo frevo na imprensa do Recife foi encontrado pelo pesquisador Evandro Rabello na edição do Jornal Pequeno (Recife), de sábado, 9 de fevereiro de 1907, ao anunciar o repertório do Clube Empalhadores do Feitosa para o carnaval daquele ano:… “O seu repertório é o seguinte: Marchas – Priminha, Empalhadores, Delícias, Amorosa, O Frevo, O Sol, Dois Pensamentos e Luiz do Monte, José de Lyra, Imprensa e Honorários, Ária – José da Luz, Tango – Pimentão. (grifo nosso).”
O verdadeiro embrião do frevo, porém, havia anos que já se encontrava presente nas ruas do Recife, sendo por vezes chamado de frevedouro. Trazendo as multidões em arrastão, na onda efervescente de tresloucados foliões a improvisar, no seu delírio coletivo, complicados passos quando do acompanhamento das agremiações carnavalescas.
A comprovação se depreende da leitura do romance Passionário, escrito pelo recifense Theotônio Freire (1863-1917), impresso no Recife em 1897, ao descrever em suas páginas cenas e costumes do carnaval do Recife do final do século XIX:
“Domingo de Carnaval. Quatro horas marcaram os relógios. O movimento carnavalesco, até então quase nulo, começou a aumentar e em breve, como se fora um rio engrossado por afluentes numerosos, estendia-se da rua da Imperatriz à do Crespo, atravessando Nova, Cabugá e a Pracinha, uma massa compacta de mascarados, mescla de costumes e caracteres de luxo e de fantasia, de todos os tempos e de todos os povos. […] Grupos, clubes, sociedades, sambas, maracatus, profusão de fitas de rendas, de pandeiretas, castanholas soando, ventarolas abertas, cabelos revoltos, cintilações de olhares, meneios de ancas polposas sob fofas de cetim, […] serpentinas enroladas e enoveladas por pescoços alvos, confeitos [seria jetones ou confetes?] pairando no espaço, entrando pelos colarinhos, pelos peitilhos, pelos decotes dos vestidos, […] tudo doidamente misturado, numa espécie de orgia, de loucura descabelada, num atabalhoamento descomunal, subia, oscilava, descia, falava, ria, gritava, berrava, andando, pulando, correndo, dançando, aos saltos, aos pinotes, fazendo ziguezagues e passos ginásticos, sem ordem, sem rumo, desenfreadamente, carnavalescamente”.
E continua Theotônio Freire sua descrição da paisagem carnavalesca do Recife, nas últimas décadas do século XIX, época em que o embrião do frevo já se fazia presente em nossas ruas: “Grupos por vezes apareciam, charangas atroavam os ares com o retintim dos metais desafinados e cordas retesas de rabecas e violões guinchavam no ambiente, clubes ostentando orgulhosamente estandartes, surrados e cheios de mofo, recortavam as ruas […] Havia no ar uma propagação infinita de ondas sonoras, distendendo-se, alongando-se, entrando pelos ouvidos adentro, num ensurdecimento sem nome. Era uma amálgama de sons e de ruídos, de notas soltas, estacadas, de flauta, de clarineta, de violino, misturadas com as vibrações abafadas, quase surdas, dos realejos e os guinchos, os berros estridentes de vozes humanas a cantar, a rir e a gargalhar, tudo num concertante estapafúrdio e sem igual.”
O Passionário, romance de Theotônio Freire, objeto de um dos capítulos do nosso livro Carnaval do Recife (2000), teve no passado uma magnífica edição comentada pelo escritor Lucilo Varejão Filho, na coleção Os velhos mestres do romance pernambucano, hoje nas livrarias.
* Leonardo Dantas Silva, jornalista e escritor, é autor do livro Carnaval do Recife. Fundação de Cultura Cidade do Recife, 2000. 372 p. ilustrado.
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