Frevo Instrumental
Dentre os muitos gêneros do frevo, o frevo-de-rua, é o de maior importância, pela sua identidade coreográfica com o passo. É nele que o compositor vem demonstrar todo o seu conhecimento musical, a sua forma de compor e de criar frases utilizando-se dos metais (trombones, trompetes, tubas) em constante diálogo com as palhetas (clarinetos, requinta, saxofones) de uma orquestra de ritmos carnavalescos. Acompanhando o seu andamento e fraseados, bem como os cantos e contracantos entre palhetas e metais, o passista (dançarino do frevo) cria, no ato, a sua coreografia própria, sem, contudo, agredir o que o compositor escreveu na pauta musical, segundo ensina Guerra-Peixe, “é a única dança que o dançarino dança a orquestração”¹.
É o frevo a mais importante expressão musical
popular, por um simples fato: é a única música
popular que não admite o compositor de orelha. Isto
é, não basta saber bater numa caixa de fósforos ou
solfejar para compor um frevo. Antes de mais nada,
o compositor de frevo tem de ser músico. Tem que
entender de orquestração, principalmente. Pode,
até, não ser um orquestrador dos melhores, mas, ao
compor, sabe o que cabe a cada seção instrumental
de uma orquestra ou banda. Pode, inclusive, não ser
perito em escrever pautas, mas, na hora de compor,
ele sabe dizer ao técnico o que escreverá a pauta, o
que ele quer que cada instrumento faça e em que
momento. Se ele não tiver esta capacidade musical
não será um compositor de frevo. Em suma: o
compositor de frevo tem que ser um músico que, pelo
menos, saiba fazer os apontamentos, distribuindo
as notas pelos naipes principais de uma banda.
Assim mesmo, este tipo de compositor, no frevo,
é uma raridade. A maioria dos principais
compositores de frevo é composta de músicos
completos, que conhecem música e são estudiosos
do assunto – o caso de Capiba e de Nelson Ferreira.
Provavelmente, continua, o frevo é a única música
no mundo, entre os gêneros populares, que já nasce
orquestrada. Podem citar o jazz como outro gênero.
Eu já acho que não. O jazz é uma improvisação
organizada. No frevo o autor escreve a música.
Papel e lápis na mão e escreve a orquestração.
Originalmente, o frevo era executado por um
conjunto conhecido por fanfarra. Era música
exclusiva dos instrumentos de metais: pistões,
trombones, tubas, trompas, bombardinos e outros
mais. Não havia saxofones. Depois, com a evolução
natural, apareceram os saxofones e clarinetos,
embora sempre em pequeno número. E até hoje há
predominância de metais. Certa vez eu ouvi em um
baile do Recife um conjunto que era composto por
dois pistões, dois saxofones, uma clarineta, uma
requinta, cinco tubas e quinze (!) trombones. E nada
é mais característico no frevo do que o som nobre e
pujante dos trombones.
E continua mais adiante, Guerra-Peixe: “o frevo
surgiu em fins do século passado. Há historiadores
e pesquisadores sérios que explicam a evolução do
frevo e defendem a teoria de que a dança é de
origem eslava. E quem observa uma dança eslava
encontra muitos pontos de contato com o frevo.
Qualquer dançarino de danças eslavas que chegar
ao Brasil encontra enorme facilidade de dançar o
frevo. Agora, como o frevo chegou ao Brasil, de que
modo, são perguntas que nenhum historiador
respondeu. Eu, por conta e risco, tenho minhas
teorias.
Acho que os ciganos que aportaram por aqui
tiveram grande responsabilidade na inclusão do
frevo em nosso repertório de música popular. A
manifestação artística frevo poderia ter vindo para o
Brasil através da plebe portuguesa. Sabe-se que em
Portugal há uma dança semelhante ao frevo, a
raspa, que é tão perigosa que foi proibida dançá-la.
Os dançarinos da raspa querem mostrar tanta
capacidade física e de resistência que muitos se
arriscam a morrer pelo esforço”, conclui este
estudioso da música brasileira que atuou como
regente da grande orquestra da Rádio Jornal do
Commercio do Recife (1949-52).
Mas, ao contrário do que ensinam alguns autores, o frevo-de-rua, ou melhor classificando o frevo instrumental, tem seu dinamismo próprio, não se atendo aos dezesseis compassos dos frevos tradicionais, como ensina o maestro Edson Rodrigues, professor do Conservatório Pernambucano de Música e ex-regente da Banda da Cidade do Recife, além de compositor e arranjador premiado em vários festivais, em depoimento pessoal:
Dizer-se que um tipo de música qualquer, desde
que dinâmico, se caracteriza por certa fórmula, é
cabível, mas afirmar-se rigidez estrutural é negar-se
a sua dinamicidade. É o caso do frevo-de-rua.
Pode-se dizer que a sua composição é do tipo
ABC – Às três da tarde, de Lídio Francisco da
Silva –, onde a primeira parte [A] não tem
ritornelo, em relação a segunda [B e C que
aparece repetida], ou ABB, exemplo do frevo
Último dia, de Levino Ferreira, onde somente a
segunda parte se repete, a exemplo dos frevos
tradicionais, com dezesseis compassos na
primeira parte e igual número na segunda.
Um caso raro, porém possível, vez por outra é o
tipo A+BBCCDD, a exemplo da composição de
Levino Ferreira Vassourinhas está no Rio, onde A
é a fanfarra inicial, B a primeira parte, C a
segunda parte e D, a terceira parte, todas
repetidas, à exceção de A, vide o disco Mocambo,
O Frevo Vivo de Levino Ferreira, gravado pela
orquestra de José Menezes em 1973 (LP 90008).
Gênero dinâmico, mutante, porque vivo e estudado
no sentido de que se lhe acrescentem novos
elementos, o frevo não pode ter parâmetros
estanques no que toca ao número de compassos
que devem constituir a sua melodia. Exemplos
que se fazem arbitrando em 16 compassos a
bitola melódica desse tipo de música orquestral é,
quando muito, temerário.
Já em 1905, Juvenal Brasil compõe de forma
singular A Província, cuja primeira parte tem 12
compassos e, o que é mais raro, inicia a sua
composição no tempo forte do compasso. Setenta
anos depois, Lourival Oliveira compôs Pilão
Deitado procedendo de igual modo, com a
diferença de que no seu frevo há 20 compassos a
mais, formando, assim, 32 compassos na sua
primeira parte. Rogério Andrade, campeão do
primeiro Frevança (1979) com o frevo Carnaval em
Bom Jardim, optou pela forma tradicional com 16
compassos na primeira parte, enquanto Levino
Ferreira, o saudoso “Mestre Vivo”, em frevo
executado no mesmo concurso, inscrito por sua
família depois de sua morte, foi vitorioso com O
Rei do Passo com 25 compassos em sua primeira
parte [9+16], a sua contagem ímpar, porém, não
quer dizer que se trata de um frevo quebrado. No
nono compasso, há um breque [parada]
complementando o décimo compasso, antes de
iniciar a segunda parte com 16 compassos.
Outros exemplos podem ser lembrados: Último
dia, de Levino Ferreira, do tipo ABB, com 24
compassos, em sua primeira parte [A] e 18
compassos em sua segunda parte [B], Às três da
tarde, de Lídio Francisco da Silva (Lídio Macacão),
do tipo ABC, com 12 compassos em sua primeira
parte, 16 na segunda parte e 15 em sua terceira
parte, Isquenta Muié, de Nelson Ferreira, do tipo
AABB, com 24 compassos na primeira parte e 24
na segunda parte.
Caracterizado por sua primeira parte, chamada
de introdução, seguida de uma “chamada”, ou
“preparação”, antecedendo a segunda parte. Os
compassos que servem de “ponte” às respectivas
partes, não foram contados para efeito das
apreciações aqui contidas, o que significa dizer
que, levados em conta tais compassos, nenhum
frevo se fará à métrica de 16 compassos para
cada uma das suas partes.
O frevo instrumental, que arrebata a alma e os sentidos levando as multidões à loucura, desperta assim o interesse dos apreciadores da música e, por vezes, levam ao pesquisador a elaborar tais análises em sua estrutura melódica e de andamento.
Mas, para o folião endiabrado, aquele que vê no frevo uma válvula de escape do extravasamento de sua alegria, ou, como na receita de Luiz Bandeira, “quem é de fato um bom pernambucano, espera um ano e se mete na brincadeira”, restam os versos do poeta Austro Costa:
Não sei se devo, ou não devo.
Dizer, mas digo afinal:
– Se até Roma fosse o Frevo,
Teria a Bênção Papal!
¹ GUERRA-PEIXE, César. “Frevo, música e dança”. In: Nova História da Música Popular Brasileira - Capiba e Nelson Ferreira. Rio: Editora Abril, 1978.
* Leonardo Dantas Silva é jornalista e escritor, autor do livro Carnaval do Recife. Fundação de Cultura Cidade do Recife, 2000. 322p. com ilustrações.
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