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O cancioneiro do ciclo junino
O cancioneiro do ciclo junino
Leonardo Dantas Silva
O ciclo junino é um dos mais festejados do calendário folclórico pernambucano sendo, também, o de origem mais remota. Os festejos dedicados aos santos de junho são an-tecedidos pelos chamados noiteiros do mês maio, em honra da Virgem Maria, de origem historicamente recente, vez que as primeiras indulgências datam de 1815 com o Papa VII. Em Pernambuco o mês mariano veio a ser introduzido em 1850, no convento do Carmo do Recife, sob a inspiração do frei João da Assunção Moura e popularizou-se através dos frades capuchinhos do convento da Penha: “no exercício do mês mariano tudo é música, poesia e flores” (Pereira da Costa).
Das igrejas os cânticos e ladainhas em honra da Vir-gem passaram a ser entoados nos noiteiros das residências, costume ainda hoje mantido na zona rural e em alguns bairros do Recife e Olinda.
TUDO COMEÇA COM SANTO ANTÔNIO
Terminado o mês de maio, tem início as Trezenas de Santo Antônio, logo no dia 1º de junho, mantendo assim es-ta secular devoção ao santo lisboeta introduzida em Per-nambuco em 1550, quando foi erguida uma capela ao santo que deu origem, em Olinda, ao primeiro convento carmelita do Brasil: Convento de Santo Antônio do Carmo.
É Santo Antônio (Lisboa, 15.VIII.1195 - Pádua, 13.VI.1231) o orago mais popular do Brasil, onde possui 228 freguesias sob a sua invocação, vindo em segundo lu-gar São José com 71. Nas famílias, Antônio é o nome esco-lhido e rara é a cidade, vila ou povoado que não tenha uma, ou mais, ruas ou avenidas com o seu nome, igrejas sob sua devoção. Afirma Luís da Câmara Cascudo, no seu Dicionário do Folclore Brasileiro, que “apesar de tanta bajulação e mu-danças corográficas o Brasil possui 70 localidades como nome de Santo Antônio”.
Em Pernambuco os franciscanos fundaram o seu pri-meiro convento em terras brasileiras, em 13 de março de 1584, na então Vila de Olinda fincando a custódia sob a proteção de Santo Antônio. No Recife, a tradição do culto do santo data de 1606, quando foi iniciada a construção do convento franciscano da então ilha de Antônio Vaz, hoje de-nominada de Santo Antônio, estando o templo localizado na atual Rua do Imperador Pedro II. Em 19 de novembro de 1709, a antiga povoação do Arrecife dos Navios veio a ser denominada de Vila de Santo Antônio do Recife, apesar do empenho do então governador Sebastião de Castro Caldas em denominá-la de São Sebastião, o que lhe custou uma advertência do Rei de Portugal. Em 1918 foi o santo lisboeta confirmado como padroeiro principal da cidade do Recife pelo Papa Benedito XV, ao conceder o co-padroado a Nossa Senhora do Carmo que ficou sendo “a padroeira menos principal”. Como se não bastasse é Santo Antônio o padro-eiro dos pernambucanos, tendo sua imagem figurado nos estandartes dos exércitos luso-brasileiros quando da Insur-reição Pernambucana eclodida em 13 de junho de 1645, dia de sua festa.
Durante treze noites, em residências das mais diver-sas, os seus devotos estão a cantar em coro:
Milagroso Antônio,
Nosso padroeiro.
Enche de alegria,
Pernambuco inteiro
SÃO JOÃO E SÃO PEDRO
Dentre as festas do ciclo junino, porém, é a de São João a mais festejada em Pernambuco. É também a festa popular mais antiga do Brasil, já sendo registrada por frei Vicente do Salvador, em sua História do Brasil 1500-1627, assim referindo-se aos naturais da terra:... “acudi-am com muita boa vontade, porque são muito amigos de novidades, como no dia de São João Batista por causa das fogueiras e capelas”.
Trata-se de uma festa de grande misticismo, a partir do próprio nome Batista — o que batiza cheio de graça —, em cuja noite se praticava feitiçarias, como demonstra a denúncia de Madalena de Calvos contra Lianor Martins, a Salteadeira, acusada dentre outras coisas, de trazer con-sigo uma semente enfeitiçada colhida na noite de São Jo-ão, segundo depoimento prestado perante o inquisidor Heitor Furtado de Mendoça, em 22 de novembro de 1593, quando da primeira visitação do Santo Ofício a Pernam-buco.
As festas juninas foram trazidas para o Brasil pelos colonizadores portugueses, eles próprios ainda hoje culto-res desta milenar tradição marcada pelas festas de Santo Antônio, em Lisboa e em Lagos; São João, no Porto e em Braga, e São Pedro, em Évora e Cascais. Na Europa as festas juninas coincidem com o início do verão, daí a pre-sença da tradição de costumes pagãos dentro dos feste-jos, como adivinhações e o culto ao fogo.
No que diz respeito às fogueiras, ensina a tradição cristã divulgada pelos jesuítas ter sido um compromisso de Santa Isabel, prima da Virgem Maria, de mandar er-guer um enorme fogaréu no sentido de anunciar o nasci-mento de seu filho João Batista: “Houve um homem envi-ado por Deus cujo nome era João. Veio ele como teste-munha, para dar testemunho da luz, a fim de que todos cressem por seu intermédio. Ele não era a luz, mas devia dar testemunho da luz”. (João 1,6-8).
No Brasil a festa acontece com o início do inverno, tempo de colheita do milho e do feijão no Nordeste, que sempre está a espera das boas invernadas de modo a a-fastar o espectro das estiagens de modo a garantir a sua subsistência; como na polca de Zé Dantas e Luís Gonza-ga, Lascando o cano (RCA 80/307B-1954):
....................................
Vamo, vamo Joana
Findou-se o inferno
Houve um bom inverno
Há fartura no sertão...,
Ai! ...Joana, traz pamonha, milho assado
Vou matá de bucho inchado
Quem num crê no meu Sertão.
Traz a riuna que eu vou lascar o cano
Pela safra desse ano
Em louvor a São João.
CANCIONEIRO JUNINO
Em se tratando de um povo de bailadores, a-costumado a dançar no meio da rua, no Brasil os festejos juninos é marcado, não somente pelas fogueiras, balões, comidas da época (nas quais predominam o milho, a mandioca, a castanha de caju e dos doces), mas também pela música em seus mais diferentes gêneros a movimen-tar os arraiás, residências, comércio, clubes sociais, pro-gramação de rádio e televisão e, sobretudo, a alma festiva dessa gente; como naquela polca de Zé Dantas e Joaquim Lima, Chegou São João, gravada por Marinês (RCA- BBL1075-B-l/ 1960):
Eita pessoá!
Chegou São João!
Vou me espraiá,
Vou dá no pé prô meu Sertão.
Eu vou pra lá,
Brincá com Tonha,
Com Zefa e Chico,
Comer pamonha e canjica
Vou soltar ronqueira,
Bebê e dançar coco
Em volta da fogueira.
Vou soltá,
Foguete, balão, buscapé
Bebendo aluá, cachaça e capilé
........................................
A festa de São João tem início com o Acorda Povo, logo na madrugada do dia 23, acordando os moradores ao som de zabumba, caracaxá, ganzá, triângulo, sanfona, tudo mo-vido a muita cachaça: “Acorda povo que o galo cantou / Foi São João que anunciou ....”.
No por do sol do dia 23, véspera da festa do santo, são acendidas às fogueiras e a festa tem continuidade com a Bandeira de São João. Uma procissão antecipada por uma estrela, coberta de papel celofane com 150 cm. de diâmetro, iluminada por velas no seu interior, é carregada por dois meninos. Seguem-se duas filas, formadas por homens e mulheres, que cantam e dançam em honra do santo, fazen-do marcação com os pés e, por vezes, trocando umbigadas. Segue-se de uma bandeira, pintada com a imagem do Batis-ta menino com o carneirinho, segurada em suas pontas por quadro adolescentes, antecedendo ao andor com a imagem do santo, esculpida em gesso ou madeira, carregado por quatro moças vestindo branco, encarnado e verde, cores mantidas também nas lanternas dos acompanhantes. Fi-nalmente uma banda de pífanos, ou um terno de sanfona (acordem, zabumba e triângulo), acompanha os seguidores no seu canto: “Que bandeira é esta / Que vai levantar/ É de São João para festejar/ Que bandeira é esta / Que já levan-tou/ É de São João, primo do Senhor”.
A música é uma constante nos festejos juninos desde os primeiros dias da colonização. Foi assim com as capelas, referidas pelo frei Vicente do Salvador e descritas pelo Padre Carapuceiro, continuando em nossos dias com a adaptação de ritmos oriundos de outras plagas, como o xote (schottis-ch), proveniente da Hungria; a polca e a mazurca, originá-rias da Polônia, e a quadrilha, que teve por berço os salões aristocráticos de França e, no Brasil, veio a ser dançada da Corte às casebres da zona rural, como bem assinala O Ca-rapuceiro, em sua edição de 6 de abril de 1842: “Nas baiú-cas mais nojentas/ Onde a gente mal se vê/ Já se escuta a rabequinha,/ Já se sabe o balancê./ Nisto mesmo está o mé-rito/ Deste dançar tão jacundo,/ Que sem odiosa exclusão,/ Acomoda todo o Mundo”.
Não faltam nessas animadas festas os ritmos originá-rios da terra, como o coco-de-roda, originário dos batuques africanos, que marcado por um ganzá, nas mãos do solista (tirador), acompanhado por um tambor em compasso biná-rio, e respondido pelas vozes dos dançarinos a marcarem o ritmo com sapateado dos seus tamancos de madeira, trocas de umbigadas e assim mantém a alegria a noite inteira. Pa-ra Pereira da Costa, in Folk-Lore Pernambucano (1908), o coco é a “dança querida do populacho, com certa cadência acompanhada a palmas, e na qual os foliões acomodam trovas populares repetidamente”[...] “o coco, porém, está tão vulgarizado que chegou mesmo à zona sertaneja, com a sua particular toada, mas, com letra variada, convenientemente acomodada ao canto, e obedecendo sempre a um estribilho contínuo, cantado em coro pelos circunstantes”. Já era des-crito no conto de Luís Guimarães Júnior (1845-98), que, es-tudante da Faculdade de Direito do Recife, publicou no Dia-rio de Pernambuco, 8 de fevereiro de 1871, um conto sob o título “A alma do outro mundo”, onde comenta o que cha-mou de “samba do Norte” , na verdade o nosso coco-de-roda. Rodrigues da Carvalho, in Cancioneiro do Norte (1928), diz ser o coco a “dança predileta do pessoal dos engenhos de açúcar, negros e caboclos, cambiteiros, o mestre de forna-lha, o metedor de cana, o banqueiro [mestre que dá ponto ao açúcar], os tanjedores da almanjarra, etc.”. Mas na hora da alegria, onde a cachaça passa a dirigir os gestos e as a-ções, nem mesmo a autoridade está livre de uma roda de coco; como bem descreve Zé Dantas em gravação de Luís Gonzaga (RCA-Leme 801656A/1957):
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O seu delegado, fez mais um esforço
E madrugada mandou um reforço
Mas desconfiado por não ter notícia
Veio ver o que houve, com a sua polícia
E de manhã cedo, a graça do povo
Era o delegado contando bem rouco
Nesse coco poliça num tem vez
Se acaba no pau, se falá em xadrez } bis
Também ligados ao Ciclo Junino, particularmente aos seus intérpretes, estão hoje o baião, o xaxado, a toada, a embolada, a ciranda e a marcha sertaneja, ou marcha junina, esta última originária das marchas populares com as quais Lisboa festeja o seu Santo Antônio e que vieram a ser co-nhecidas, através das companhias de revista, como marcha portuguesa, a exemplo da marcha de Zé Dantas e Luís Gon-zaga, São João na roça (RCA 800895A/1952):
A fogueira tá queimando
Em homenagem a São João
O forró já começou... ô
Vamos gente!...
Rapa pé nesse salão.
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Ou esta outra marchinha, marca do romantismo das noites juninas, composta por Luiz Gonzaga e José Fernan-des, Olha pro céu (Vitale 603326832), recentemente relan-çada na coletânea 50 anos de chão, em homenagem ao Rei do Baião:
Olha pro céu, meu amor
Vê como ele está lindo...
Olha pra aquele balão multicor
Como no céu vai sumindo...
Foi numa noite
Igual a esta
Que tu me deste
O coração
O céu estava
Assim em festa
Porque era noite
De São João
Havia balões no ar
Xote, baião, no salão
E no terreiro, o teu olhar
Que incendiou meu coração
Tudo acontece numa mistura de ritmos e de cores, num cadinho conhecido no passado por forrobodó, já neste século por forrobodança e a partir dos anos quarenta por forró, como lembra Zé Dantas in Forró do Mané Vito, grava-do por Luís Gonzaga em 1949 (RCA 800668B/49) ser o lo-cal onde todos esses sons se misturam num grande baile popular.
Nas composições musicais do ciclo junino está toda moral do sertanejo, “Sertão das muié séria / Dos homi tra-baiadô”... (A volta da asa-branca, toada de Zé Dantas, gra-vada por Luís Gonzaga, em 1950, RCA 800739 A) e a vida simples do seu povo:
Ai São João chegou,
Iaiá!
Ai São João chegou,
Sinhá!
Teu vestido de chita,
Já mandei preparar.
Minha roupa de lista,
Já mandei engomar,
Eu tenho uma festinha
Para te levar
Eu tenho uma fogueira,
Para o nosso lar
E hoje, o jovem romântico de ontem, pode lembrar com saudades aquelas noites juninas que não voltam mais, cantando aquele sucesso sempre atual, composto por Zé Dantas e Luiz Gonzaga em 1954, que leva o singular título de Noites brasileiras (RCA 801307 A):
Ai que saudade que eu sinto
Das noites de São João
Das noites tão brasileiras das fogueiras
Sob o luar do sertão
Meninos brincando de roda
Velhos soltando balão
Moços em volta à fogueira
Brincando com o coração
Eita São João dos meus sonhos
Eita saudoso sertão, ai, ai...
Leonardo Dantas Silva, jornalista e escritor, é autor do livro Cancioneiro Per-nambucano. Recife: Governo de Pernambuco; Secretaria de Educação e Cul-tura, 1978. 300p. Ilustrado com arranjos para canto coral.
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