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A Calunga de Angola nos Maracatus do Recife
A Calunga de Angola nos Maracatus do Recife
O embaixador Alberto da Costa e Silva, que por muitos anos serviu na Embaixada do Brasil em Lisboa, ao escrever o seu livro A Enxada e a Lança - A África antes dos portugueses , veio revelar aspectos vários ligados a manifestações brasileiras de origem africana. No seu livro, todas as suas etnias antes dos Descobrimentos, aparecem aos olhos do leitor interessado em tão fascinantes temas, hoje presentes em nosso mundo contemporâneo. Nas suas 768 páginas, o livro estuda cada uma das regiões com os seus respectivos costumes, lendas e tradições, bem como os vários povos que ali habitavam.
De especial interesse para nós, que há tantos anos estudamos a Instituição dos Reis do Congo e sua presença nos maracatus do Recife, é a forte influência do culto da Calunga entre os ambundos de Angola, guardada como objeto sagrado e poderoso pelos cabeças de certas linhagens .
No seu Dicionário Kimbundo-Português , A. de Assis Júnior define o adjetivo kalúnga por “Eminente.; Insigne; tratamento equivalente a Excelência; Eminência; Senhor; Fidalgo que tem honras de grandeza; pessoa de alta gerarquia. Grande. Incomensurável. Infinito”. Como substantivo, kalúnga: “massa líquida que circunda os continentes, o Oceano”. Na Mitologia, kalúnga seria “Deus”; na sua acepção “– ‘ a-ngombe”, seria o “Deus da Morte; a própria Morte; o Além; a Eternidade; uma das três deusas que fiavam e cortavam o fio da vida”; na acepção de “– Samba”, seria o “Deus da família, da vida; o maior dos Deuses”.
Calunga de Angola
Explica Alberto da Costa e Silva:
Segundo a lenda, o herói civilizador ambundo, Angola Inene, teria trazido de terras do nordeste ou, conforme outras versões, do mar, as lungas (ou malunga, que é plural em quimbundo da palavra). Esta última origem seria o resultado de interpolação européia, do traduzir equivocado de Calunga, ‘as grandes águas’, por oceano Atlântico, e contrasta com o papel agrário da escultura de madeira, ligada aos ritos de chamar a chuva e da fertilidade. As ‘grandes águas’ podem ter sido um dos afluentes do Zaire ou qualquer outro lago ou rio. Os europeus além disso, interpretaram Calunga como uma alta divindade e talvez tenham contagiado com este novo conceito as crenças ambundas. (...) A Calunga tornou-se assim, e desde há bastante tempo - a contar do fim do século XIII? -, fonte de poder político e de uma organização social fundada na terra, num sítio preciso, e não apenas na estrutura de parentesco. Muito embora tenha sido depois suplantada, em quase toda parte, por novos símbolos da centralização estatal, persistiu como emblema dominante no baixo Lui e ligada ao nome de numerosos ancestrais e fundadores de reinos, bem como aos títulos de vários sobas. Entre os cubas houve um Calunga; Calala Ilunga foi o herói civilizador dos lubas; os quiocos possuem um Calunga entre os seus maiores; os povos do sul do lago Maláuu dizem que Calunga lhes trouxe as novas instituições; a palavra aplica-se entre os lundas, ao senhor, ao chefe, ao rei, e, entre os congos, era, a um só tempo, o título mais comum dos quitomes, uma grande extensão de água e a vasta corrente mítica a separar as duas montanhas que formavam o mundo dos vivos e o mundo dos mortos. A boneca, com o seu nome, atravessou o Atlântico e sobrevive nos maracatus brasileiros.
Cada lunga vivia num determinado curso d’água. E era guardada por uma linhagem, cujo chefe conhecia o segredo da comunicação com as forças espirituais que a boneca continha. Essa linhagem sobrepunha-se às demais e seu cabeça possuía autoridade territorial sobre toda a área banhada pelo riacho ou pedaço de rio onde morava a lunga. Era ele quem alocava as terras a novas famílias que para ali quisessem mudar-se e, paulatinamente, senhor das chuvas e da fertilidade da terra, passou a receber tributos e a concentrar riqueza e poder. Estabeleceu-se também uma hierarquia entre os vários guardiães de calungas: o custódio da estatueta do rio principal era mais importante do que o dos riachos tributários, a graduação da autoridade fazendo-se conforme a hidrografia.
Calunga do Recife
No Recife a Calunga, também chamada de boneca, se liga ao cortejo das nações africanas, do qual se originou o nosso maracatu, segundo esclarece a mesma fonte: “Mantendo-se em segredo, os vínculos entre grupos ambundos, num segredo auxiliado pela ignorância dos senhores de escravos, tinham os chefes vendidos [escravos] de mostrar a fonte do seu poder – e já agora também penhor de unidade do grupo ao Brasil –, a calunga”.
Até os nossos dias a calunga faz parte do ritual do maracatu, encarnando nos seus axés a força dos antepassados do grupo. Em sua honra é cantada a primeira toada do maracatu – ainda dentro da sede quando a calunga passa das mãos da rainha para outras mãos, cada qual dançando um pouco com a calunga, antes de passá-la adiante –, sendo levada às ruas pela dama-do-paço (uma espécie de conselheira segunda pessoa da rainha) e em sua honra é também cantada a última toada, quando o préstito se recolhe à sede.
As calungas, quase sempre de madeira escura, podem ser de um ou outro sexo, muito embora sejam sempre tratadas no feminino, representando, por vezes, ascendentes africanos ou pessoas ligadas à história do próprio grupo. No caso excepcional, uma calunga tem o seu nome ligado a um membro da Família Real Brasileira: Dona Isabel, do Maracatu Leão Coroado, homenageia a Princesa Isabel que, em 13 de maio de 1888, assinou a Lei Áurea extinguindo a escravidão negra no Brasil.
São designadas pelos nomes de iniciação em cada grupo: Dona Emília, Dona Leopoldina e Dom Luiz, no Maracatu Elefante; Dona Clara e Dona Isabel, no Maracatu Leão Coroado; Dona Joventina, no Maracatu Estrela Brilhante; Dona Inês e Dona Júlia, no Maracatu Porto Rico, esta última uma homenagem a D. Santa que fora rainha do Maracatu Elefante.
Sobre o assunto, informa Guerra-Peixe, no seu Maracatus do Recife:
Das bonecas [calungas] do Elefante, Dona Emília parece ser a que recebe maiores atenções. Dedicada a ela há ocasião para a dança especial, quando passa pelas mãos de todas as baianas do cortejo; a ela são consagrados os cânticos mais “fortes”; é essa a principal boneca levada à porta da igreja de N.S. do Rosário [dos Homens Pretos de Santo Antônio]; com ela o Maracatu Elefante dança diante dos terreiros visitados. E é nas canções oferecidas a Dona Emília que os músicos executam o ritmo “de Luanda” – o toque “para salvar os mortos”, os “eguns”, como dizem. À mesma calunga, finalmente cabem as designações: “Princesa Dona Emília”, “Princesa Diamante” e “Princesa Pernambucana”, indiferentemente.
Dom Luís “representa um rei africano”, sendo por isso considerado como “rei do Congo”, circunstância por que é nomeado de uma ou outra forma.
O certo, porém, é que as calungas, quaisquer delas, como bonecas que “representam” os ancestrais africanos, é um registro repetido em diversos maracatus tradicionais.
Os ascendentes africanos ou não, invocados nas bonecas, constituem um ponto que carece ser estudado por pessoa credenciada como frisamos antes. Avançando, porém, um pouco nessas questões, seria oportuno perguntar se: “Princesa Pernambucana” não é uma reinterpretação originada dos problemas dos escravos? – diante das reprimendas às suas recordações oportunas, lembradas por Pereira da Costa. Tal como se verificou no panteão afro-brasileiro – originando as identificações dos orixás com os santos católicos, já em parte assinaladas pelos estudiosos – talvez o mesmo ocorresse com as calungas. As informações sobre Dom Luís – “um rei africano” e “rei do Congo”– parecem resultar de reminiscências da instituição do Rei do Congo estabelecida entre nós. Vejamos os dizeres de um cântico:
A bandêra é brasilêra
Nosso rei veio de Luanda
Ôi, viva Dona Emília
Princesa Pernambucana
Nas vestimentas das calungas predomina o branco, a cor simbólica ou aledá de Orixalá, no panteão afro-recifense. Esse elemento concorda com o que apontamos sobre o principal totem do Maracatu, o elefante “o primeiro animal que Orixalá montou”.
Quando das chuvas que inundaram o Recife em julho de 1975, provocando deslizamentos de barreiras nos morros da zona norte, no Córrego do Cotó, em Água Fria, o velho Luiz de França, principal responsável pelo Maracatu Leão Coroado, nascido em 1900, mas que nunca quis ser o rei daquele grupo, saiu de casa apenas com as calungas – Dona Clara e Dona Isabel – , não se importando com os comentários dos curiosos que, não entendendo o significado do seu gesto, censuravam “o velho que dormia agarrado com duas calungas de maracatu”.
Com a morte de Dona Santa, em 1962, a original Nação do Elefante deixou de desfilar, e suas três calungas, juntamente com outros pertences, estão hoje recolhidos ao Museu do Homem do Nordeste da Fundação Joaquim Nabuco, no Recife.
Naquele ambiente convencional de museu, restam as lembranças daquela boneca que, empunhada pela dama-do-paço, vinha às ruas do Recife mostrar a força da nação do Elefante ao som dessas loas:
Princesa Dona Emília
Pra onde vai? – Vou passeá
Eu vou para Luanda
Vou quebrar saramuná.
Eu vou, eu vou
Eu vou para machá
Eu vou para Luanda
Eu vou para Luanda
Vou quebrá saramuná.
A boneca é de sê!
É de seda e madeira
A boneca é de sê!
É de seda e madeira.
A boneca é de sê!
É de seda e madeira.
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