Recife & Olinda:Os muitos frevos
Recife & Olinda:
Os muitos frevos
de um Carnaval
Leonardo Dantas Silva
Êta frevo, bom danado!
Êta povo, animado!
O frevo começa
Parece que o mundo vai se acabar
Quem cai no passo,
Não quer mais parar.
Luís Bandeira
Nesses dias dedicados ao Carnaval, às ruas e becos do Recife e de Olinda estão tomadas por caboclinhos, maracatus de baque virado, troças, ursos, fanfarras dos clubes de frevo, maracatus rurais, orquestras de pau-e-cordas dos blocos carnavalescos, tribos de índios, bois, reisados, seguidos por turmas de mascarados e alegres foliões.
Para Luís da Câmara Cascudo “o carnaval mulato do Recife” , como assim o batizou o poeta Ascenso Ferreira, tem conotações próprias e bem diferentes daqueles do restante do Brasil: “O carnaval dos grupos e dos ranchos, das escolas de samba do Rio de Janeiro não é o carnaval do Recife, o carnaval da participação coletiva na onda humana que se desloca, contorce e vibra na coreografia, a um tempo pessoal e geral do frevo, com a sugestão de suas marchas-frevos pernambucanas, insubstituíveis e únicas”
O carnaval, da forma como é hoje conhecida entre nós, tem suas origens na mais remota antiguidade. Alguns chegam a lembrar os festejos romanos das saturnais, lupercais e bacanais, bem como ao culto da deusa Isis, ou aos gregos, no culto ao deus Dioniso, caracterizados pela alegria desabrida, pela supressão da repressão e da censura, pela liberalidade das atitudes críticas e eróticas.
No Brasil o Carnaval dos Mascarados, tal como acontecia em cidades da Europa, a exemplo de Nice, Paris, Veneza, Roma, Nápoles, Florença, Colônia e Munique, são registrados pela imprensa a partir do final da primeira metade do século XIX. Com suas músicas barulhentas, desfiles de carros alegóricos, com as suas críticas e licenciosidades, bailes de máscaras e desfiles de mascarados pelas ruas, dando assim inspiração a literatos, artistas e compositores.
Antes o que se viu, particularmente em Pernambuco desde a primeira metade do século XVI, foi a selvageria do entrudo português. Originário do latim, introitus, e já conhecido documentadamente na Península Ibérica desde o século XIII, as festas aconteciam nos três dias que precediam a Quarta-Feira de Cinzas, na qual quase tudo era permitido, não somente no Brasil como em toda a América Espanhola, em que reinava o “entrudo porco e brutal”.
A MASCARADA NAS RUAS
O carnaval mestiço do Recife, com todo o seu colorido e variedades de manifestações, tem o seu nascedouro nos Bailes de Máscaras, originários da França e com presença marcante nas principais cidades da Europa, muito especialmente no repertório da ópera italiana e alemã.
No Recife, o primeiro deles veio acontecer na Passagem da Madalena (Rua Benfica), sendo objeto de correspondência publicada pelo Diario de Pernambuco de 13 de fevereiro de 1845, subscrita por “Um Mascarado”: “o divertimento inocente, inteiramente novo para esta Província, teve estas feições: ordem, decência, regozijo e bom gosto. Para o primeiro ensaio força confessar que o baile teve belas feições [...] Entre os 33 mascarados que apareceram, dez trajando com gosto, propriedade e elegância são alguma cousa...” — O tema é objeto das edições dos dias 17 de fevereiro, 1º e 10 de março de 1845.
As primeiras sociedades carnavalescas do Recife estavam, diretamente ligadas ao ambiente dos bailes de máscaras, promovidos nos teatros de então. Dos teatros esses bandos de foliões saíam às ruas durante o período diurno, com suas insígnias, estandartes e alegorias, em louvor ao reinado de Momo, como se depreende do noticiário do Diario de Pernambuco, de 10 de fevereiro de 1872: “Nos três primeiros dias de carnaval, às 5 horas da tarde, sairá do teatro um bando de máscaras levando a sua frente uma banda de música com os competentes estandartes carnavalescos guarnecidos de emblemas característicos, devendo percorrer as ruas principais desta cidade; não esquecendo que faz parte integrante o amantético [amante ridiculamente apaixonado], sempre lembrado e muito prestimoso, Baco montado numa pipa”.
Os passeios de mascarados nas ruas centrais do Recife vieram dar origem às primeiras agremiações, bem à moda do carnaval europeu, inclusive com um forte apelo para a crítica de costumes. A primeira delas foi o Club dos Azucrins, que começou a desfilar no carnaval de 1869, sendo responsável pela publicação do primeiro jornal carnavalesco do Recife, O Azucrin, surgido no carnaval de 1873.
Com a abolição da escravatura negra, em 1888, e a proclamação da República, no ano seguinte, aumentou sensivelmente o número das sociedades carnavalescas, em sua grande maioria formadas por trabalhadores urbanos, que vieram contribuir com o surgimento de novos clubes pedestres no carnaval do Recife. Assim noticia o Jornal do Recife, nas edições de 1º, 2 e 3 de março de 1889, o aparecimento do Club Carnavalesco Vassourinhas, hoje o mais antigo do carnaval pernambucano.
No carnaval daquele ano exibiram-se, além do Club dos Vassourinhas, outros congêneres, segundo registra o Diario de Pernambuco, de 5 de março: “Revista Diária — [...] O Club dos Vassourinhas, mesmo gênero daquele, igualmente bem trajado, e que, como esses outros, colheu aplausos com os seus toques, cantos e dançados. O Club Borboleta a guiza de banda marcial, que, a pé, fez seu trajeto por diversas ruas, tocando alguns trechos bem estudados. O Club da Canninha Verde, que, melhor aparelhado do que no ano findo, exibiu-se artisticamente”.
Tais entidades compareciam às ruas trazendo à frente dezenas de morcegos destinados a abrir espaços na multidão. Os integrantes dos seus cordões vestiam fantasias confeccionadas em seda japonesa e calças de flanela, liderados por dois balizas responsáveis pela evolução. Os seus porta-estandartes, trajando fantasias bem à moda dos salões de Luís XV, e quatro “balizas serra-filas” abrindo para apresentação dos estandartes, abriam espaços para os sócios mais graduados e para os destaques da agremiação. Se apresentavam vestindo fina seda, com sombrinhas cobertas pelo mesmo tecido, sapatos de verniz de entrada baixa, trazendo ao centro o Papai do Clube — “um tipo gordo, fantasiado de palhaço de circo, com um ‘bouquet de flores’ na mão e na outra um grosso bastão, fazendo graça para o povo”. Encerrando o préstito, uma banda de música de formação militar executava o repertório previamente ensaiado. Em pontos previamente estabelecidos, o cortejo parava para entoar árias de óperas, fados, cantorias e, em particular, executar ensaiadas manobras, sob a direção do “mestre-baliza”, ao som de marchas, tangos, polcas, dobrados e outros gêneros executados pela banda militar, que acompanhava o coro de vozes e os solos do tenor.
É deveras significativa a notícia do Diario de Pernambuco, de 4 de março de 1905, ao fazer referência ao desfile do Clube Misto das Pás em comemoração ao seu décimo quinto aniversário de sua fundação, “Nos três dias de carnaval o Clube exibirá marchas carnavalescas com rico e garboso figurino, regendo as manobras o Sr. Manuel Régis, diretor da passeata. A música estará a cargo do mestre ensaiador Sr. Manuel Borges e a parte dramática sob a direção do ex-presidente Carlos Ernesto de Oliveira que cantará as árias do Clube como tenor comprimário. No primeiro dia a orquestra do Clube tocará as seguintes marchas e árias: Amor e Ordem, Chaleira, Não se meta, Talvez te escreva, Ágapito, Etelvino, Natividade, Casando, Mocidade da Rua Velha, Jaques na folia, Ária dos pássaros e outras.”.
Dentro desse espírito é criado, em 1901, o Clube de Alegorias e Críticas dos Cara-Duras, que tinha sua sede no Cais do Capibaribe [Rua José Mariano] nº 228, e movimentava a cidade com os seus ruidosos Zés Pereiras, nas noites dos sábados que antecediam ao carnaval propriamente dito.
Durante o deslocamento da agremiação a banda musical executava marchas e polcas aceleradas, o que levava os seus seguidores ao delírio, formando um burburinho humano então chamado de frevedouro.
Naquela confusão, com tamanho rebuliço, efervescência de sons e vozes, apertões de corpos suados, estava surgindo aquilo que, anos depois, a sabedoria popular veio sintetizar num só vocábulo: frevo.
Era o embrião do frevo já presente nas ruas, na corrutela de frevedouro, e que logo vai se cristalizar na denominação e no compasso binário das marchas carnavalescas pernambucanas, trazendo de arrastão a onda efervescente de tresloucados foliões a improvisar, no seu delírio coletivo, complicados passos.
OLHA O FREVO!
O frevo como música teve sua origem no repertório das bandas militares em atividade na segunda metade do século XIX no Recife. O maxixe, o tango brasileiro, a quadrilha, o galope e, mais particularmente, o dobrado e a polca, combinaram-se, fundiram-se, dando como resultado o frevo, criação do carnaval do Recife ainda hoje em franca evolução musical e coreográfica.
No meio dos clubes carnavalescos o vocábulo frevo já se encontrava presente em 1907, segundo demonstra Evandro Rabello em artigo sobre Osvaldo de Almeida, publicado no Diario de Pernambuco de 11 de fevereiro de 1990. No Carnaval de 1907, o Clube Carnavalesco Empalhadores do Feitosa publica no Jornal Pequeno, edição de 9 de fevereiro, o repertório da agremiação onde aparece O Frevo como uma das marchas a ser executadas por sua orquestra.
Em sua edição de 22 de fevereiro de 1909, o mesmo jornal traz na sua primeira página uma interessante xilogravura de autor desconhecido com a frase Olha o Frevo, anunciando desta maneira os festejos carnavalescos daquele ano. Pereira da Costa, em seu Vocabulário Pernambucano, assim comenta: “O termo frevo, vulgaríssimo entre nós, apareceu no carnaval de 1909: Olha o Frevo!, era a frase de entusiasmo que se ouvia no delírio da confusão e apertões do povo unido, compacto, ou em marcha acompanhando os clubes”.
A marcha-carnavalesca pernambucana, com o passar dos anos, foi tomando espaço de maneira que cada sociedade viesse a dispor do seu próprio repertório. Algumas delas chegaram aos nossos dias, como a nacionalmente conhecida Marcha nº1 dos Vassourinhas , composta por Matias da Rocha e Joana Batista em 6 de janeiro de 1909, do arquivo do Clube Carnavalesco Misto Vassourinhas do Recife, que, a exemplo de outras mais, foi composta com letra para ser cantada pela multidão por ocasião das suas apresentações.
Se esta rua fosse minha
Eu mandava ladrilhar, } bis
Com pedrinhas de diamante
Prá Vassourinhas passar.
OS MUITOS FREVOS DO RECIFE
Nos anos 30 do século passado convencionou-se dividir o frevo em FREVO-DE-RUA (quando puramente instrumental), FREVO-CANÇÃO, (este derivado da ária, tem uma introdução orquestral e andamento melódico, típico dos frevos de rua) e o FREVO-DE-BLOCO. Este último executado por orquestra de madeiras e cordas (pau e cordas, como são popularmente conhecidas), é chamado pelos compositores mais tradicionais de marcha-de-bloco (Edgard Moraes, falecido em 1975), sendo característica dos Blocos Carnavalescos Mistos. Este folguedo carnavalesco, originado dos ranchos de reis e do pastoril, sai nos dias de carnaval com orquestra formada por violões, violinos, cavaquinhos, banjos, clarinetos, contrabaixos, percussão; aparecendo nos dias atuais alguns metais (tubas, saxofones, bombardino e trompetes) em face da necessidade de se fazer ouvir a orquestra, indispensável no acompanhamento do coro.
No Frevo de Bloco está a melhor parte da poesia do carnaval pernambucano, diante do misto da saudade e evocação que contém nas letras e nas melodias de grande parte de suas estrofes. Como Evocação (Mocambo nº 15.142-B), composto em 1957 por Nelson Ferreira (1902-1976):
Felinto, Pedro Salgado,
Guilherme, Fenelon,
Cadê teus blocos famosos?
Bloco das Flores,
Andaluzas, Pirilampos, Apôis Fum!
Dos carnavais saudosos?!
Como o frevo-de-bloco, o frevo-canção também possui uma letra que vem logo a seguir de uma introdução orquestral com cerca de 16 compassos. Tão velho quanto o frevo-de-rua, como já vimos anteriormente, o frevo-canção é responsável pela grande animação dos salões e das multidões que acompanham as Freviocas durante os e quatro, cinco até dez dias de carnaval. Os motivos das suas letras são os mais diversos, inclusive a própria animação do frevo, como bem afirmam Luiz Bandeira e Ernani Séve (Rozenblit LP 90.007):
Êta frevo, bom danado!
Êta povo, animado!
Quando o frevo começa,
parece que o mundo já vai se acabar
Êh!
Quem cai no passo não quer mais parar
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Muito embora seja uma constante em todos os salões durante os dias de carnaval, o frevo-de-rua foi feito inicialmente para ser executado a céu aberto. Na rua, como a sua denominação está a exigir. Sua base melódica é responsável pela coreografia do passo e pela movimentação das multidões não só do Recife, como de Olinda e ou outras cidades do Norte e Nordeste do Brasil.
O frevo-de-rua é composto de uma introdução, geralmente com 16 compassos, seguindo-se da chamada “resposta”, ao mais das vezes com igual número de compassos, que por sua vez antecede a segunda parte, que nem sempre é uma repetição da introdução.
Para o musicólogo Guerra Peixe, in Nova história da Música Popular Brasileira – Capiba, Nelson Ferreira (Rio, 1978), é “o frevo a mais importante expressão musical popular, por um simples fato: é a única música popular que não admite o compositor de orelha. Isto é, não basta saber bater numa caixa de fósforos ou solfejar para compor um frevo. Antes de mais nada o compositor de frevo tem de ser músico. Tem que entender de orquestração, principalmente. Pode. até, não ser um orquestrador dos melhores, mas, ao compor, sabe o que cabe a cada seção instrumental de uma orquestra ou banda. Pode, inclusive, não ser perito em escrever pautas, mas, na hora de compor, ele sabe dizer ao técnico o que escreverá a pauta, o que ele quer que cada instrumento faça e em que momento. Se ele não tiver esta capacidade musical não será um compositor de frevo”.
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