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Curiosidades
A Farra Era do Boi

A FARRA ERA DOS BOIS

Maracatus e trios elétricos dominam o carnaval da Mata Norte


(Maria Alice Amorim)

A fauna carnavalesca da Mata Norte pernambucana vem obedecendo ao princípio básico da evolução das espécies: sobrevive o mais forte. Pouco a pouco, boi, burra, besouro, urso cedem lugar a dois "fenômenos", independentes entre si, carreadores de quase toda a verba destinada à folia - os maracatus de baque solto e os trios elétricos, com os segregadores cordões de isolamento.

A cada ano surgem novos maracatus. Segundo dados da Associação de Maracatus de Baque Solto do Estado de Pernambuco (AMBS-PE), fundada em 1990 e com sede própria recém-construída em Aliança, existiam oitenta maracatus cadastrados em 1996, mas a soma seguramente extrapola, vez que sempre aparecem maracatus neófitos durante o carnaval.

Mais de vinte cidades acolhem os folgazões nos três dias de brincadeira. A contribuição varia, podendo até mesmo ser inferior a meio salário mínimo para repartir com o grupo. Entretanto, mesmo sendo ínfima, e os custos elevados, há o prazer de brincar. Os maracatus se proliferam. Assim, enchem hoje as ruas com seu brilho feiticeiro, como nos anos 70-80, a farra era dos bois, alguns deles vivos contando a história. É o caso do Boi Mirim, de Aliança, fundado há 17 anos, por nove pessoas, entre elas Manuel Francisco da Silva, o popular Mirim, que ainda hoje está à frente do boi de carnaval. São 65 componentes encarregados da animação, entre eles o indispensável boi, uma vaca, trinta burras, três tesoureiros e seis baianas.

Mirim foi pedreiro, servente, biscateiro, trabalhador da palha da cana, banqueiro de bicho. Atualmente, aposentado, dedica-se com tal afinco ao boi que aumenta, a cada ano, o número de folgazões e de cidade visitadas durante os três dias de folia. Também saem na Páscoa, juntando-se a eles caboclos de lança. "É bom porque enfeita mais", assegura Mirim.

Trabalhando desde novembro, admite que às vezes sofre prejuízo, mas não se intimida. "A gente esquenta a cabeça mais um pouco e no dia que morrer fica na história. Isso é que é importante". No domingo de carnaval, o boi não escapole de Aliança. 72 casas já esperam o boi com comida e bebida. Mas a paga da farra não é essa. "Todos são contratados; se não ganhar, não brinca", enfatiza Mirim.

Enquanto isso, o Boi Milonga, também de Aliança, fundado em 1965, visita muito poucas casas, não sai da cidade, nem contrata ninguém. Entretanto, se sair pelas ruas, arrasta os foliões. "A gente toca baque solto. Os bois daqui tocam baque virado", esclarece o diretor de bateria, Manuel Herculano da Silva Neto, conhecido por Júnior, acrescentando que a farra é comandada por um boi, duas burras, um bandeirista, um mestre e sete músicos.

Grande defensor dos bois, o artista plástico, diretor de cultura da Prefeitura de Tracunhaém, Tiago Amorim, promoveu em janeiro passado, a 1º Festa do Boi, da qual participaram os quatro bois da cidade - Boi da Mãe, Teimoso, Milagroso e do Artesão -, juntamente com outros bois convidados, no intuito de preservar o gosto por brincadeira antiga e característica do nosso folclore.

"O Boi Teimoso é fantástico. Tem uma batida semelhante ao baque virado. É sincopado, meio quebrado", entusiasma-se Amorim. Já o Boi da Mãe, "é um boi simples. Tem na faixa de vinte figurantes. É um boi moderno", ressalta um dos fundadores, Severino Gonçalves da Silva, acrescentando que o boi só sai na segunda-feira de carnaval, e apenas em Tracunhaém. Durante o ano, "o boi fica na engorda".

Já o Boi do Artesão é uma mistura de criatividade, ritmos pernambucanos e atividade educativa. Evidentemente que todos os bois, de casa e de fora, serão muito bem recebidos durante o carnaval da cidade, mas a grande festa vai ser mesmo dos maracatus de baque solto - mais de cinqüenta deles estarão lá, fazendo manobras e tirando loas.

Ainda em Tracunhaém, o Caboclinho Coités, fundado em 1973, por José da Silva Coelho - popular Zé Preto - e sua mulher, Luíza Bezerra Coelho, arranca aplausos até dos peixes, graças à beleza do figurino e à agilidade dos brincantes. "Numa certa cidade, ao lado da prefeitura tem um lago. Os peixinhos batendo palma o meu brinquedo quando passei", relembra o entusiasta Zé Preto. Funcionando precariamente na casa dos fundadores, o caboclinho sai neste ano com cinqüenta componentes e visita 13 cidades.

Zé Preto trabalha na prefeitura, foi vereador de 1982 a 88, cuidava da fiscalização das praças, tem dois irmãos que brincam no caboclinho e não esconde que o Coités é mesmo sua grande paixão. Trabalha praticamente sozinho e garante que as despesas e a trabalheira são muito grandes. "Comecei a brincar burra calu. Depois de máscara, de Catirina. Ai foi quando parei tudo e comecei com esse brinquedo."

Quanto à religião, garante que só acredita em Jesus Cristo, nada de umbanda, de espiritismo, para "socorrer" o caboclinho. Comparando-se ao caboclos de lança, dispara: "Maracatu não tem lenda, quem tem lenda é índio". São, pois, 32 índios, 12 índias, duas burras, dois bandeirinhas, três batedores - tarol, mineiro e gaita - que fazem a "lendária" festa, acompanhados da poesia do mestre e contramestre.

Em Buenos Aires, é o Índio Brasileiro que passa de pai para filho desde 1969 e faz o atual presidente Severino Miguel da Silva, o Galego Miguel, confessar: "Gosto tanto desse carnaval mais do que de meus filhos". É pedreiro, trabalha na prefeitura, recebe salário mínimo, não sabe ler, nem escrever, só assina o nome. Faz questão de manter vivo o caboclinho que seu pai criou e toda a família vê-se envolvida. A sede funciona na antiga casa de morada de Antônio Miguel, local amplo, com bar, sinuca, quarto para guardar as fantasias e quintal onde são confeccionados os penachos.

"Trabalho demais para segurar essa brincadeira", confessa Galego Miguel, que administra 68 componentes, providencia as fantasias, organiza as viagens - neste ano visitam mais de dez cidades - arranja transporte, comida, e dinheiro para aos folgazões. "Não deixo uma roupa para o outro ano. Mandei comprar cinqüenta metros de pano só para a cabocaria. Para as índias e bandeirista, trinta metros. O negócio da gente é muito bem organizado."

O caboclinho de Galego tem obrigação com o santo. Tem madrinha. "Não sei para os outros, mas a madrinha que eu tenho é pesada. Tem umas pessoas que brincam só, outras não, só manifestadas. "Garante que o maracatu também tem obrigação religiosa, mas "a trempe do maracatu é outra maneira". Não se indispõe com os maracatus, mas afirma que por causa deles, "acabou-se a tradição de boi, de urso, de bloco".

Na realidade, essas manifestações apresentam-se hoje de modo bastante esparso, uma aqui, outra ali, enquanto os maracatus formam uma massa compacta de folgazões e há cidades em que todos os oitenta comparecem, como é o caso de Aliança, sede da AMBS-PE. Em Goiana, maracatus dividem espaço com algumas brincadeiras tradicionais - os Caboclinhos Caetés, as Pretinhas do Congo e a Burra Reboladeira. Em Nazaré da Mata, fizeram sucesso o Urso de Gebreu, a Perna Cabeluda, a Ciranda de Antônio Mestre e diversos bois, empolgando os foliões.

"Em Aliança, só boi tinha 18, nos anos 70. Eram 22 clubes - três escolas de samba, o bloco Colombina e os bois", relembra Mirim. Nos anos 80, os diretores de Boi Milonga tinham o Boi de Ouro e a escola Sambaço. Em Carpina, muito blocos e troças animaram a cidade, entre eles, os Lenhadores e o Besouro Verde.

Os maracatus são numerosos na Zona da Mata Norte, organizados e bonitos. Fazem parte da tradição folclórica do carnaval pernambucano. Compartilham dos mesmos espaços monescos das outras tradicionais brincadeiras, mas o que vem enchendo mesmo as ruas são os rendosos trios elétricos, abafadores de bois, ursos e outros bichos mais.



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