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Biografias |
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Assis Valente
14 de Maio de 1941. Os jornais cariocas ( e de todo Brasil ) abriram manchetes e espaços para noticiar uma tragédia pessoal que – aparentemente – explicação não tinha: alheio ao drama maior da crescente Segunda Grande Guerra Mundial um jovem e conhecido compositor popular, protético de renome no Rio de e em Salvador da Bahia, querido em todo Brasil, tentou matar-se pulando espetacularmente do Corcovado. Por quê ?
Ninguém sabia a razão. Na infelicidade conjugal, nas dificuldades econômicas ocasionais, na dor do quase suicida. Que milagrosamente salvou-se. A cidade esqueceu rapidamente – na velocidade das notícias internacionais – o drama particular de mais um José. Talvez nem ele mesmo soubesse então que no desejo de evitar-se, na intenção inconsciente de fugir de si mesmo, estava o motivo real de sua vontade de morrer. As rádios de todo Brasil tocando seu sucesso Brasil pandeiro, o povo cantando e assoviando o samba nas ruas e ele, perplexo e afogado em suas mágoas particulares, sentindo-se inútil e vazio. Querendo destruir-se, morrer. Brilho externo e vergonha interior de ser impuro, Talvez.
Foi sempre assim nos cinquenta anos de vida desse baiano – bonito e inteligente, bem falante e vistoso – nascido em 19 de Março de 1908, nas cercanias da cidade do Salvador, filho de uma desconhecida e solteira Maria Esteves Valente. Pobre, mas tinhoso de vontade. Que se fez por conta própria. Cresceu, lutou e ( quase ) venceu. Pela necessidade interior ( que todos temos ) de querer, de estar, de sonhar, de construir e viver e realizar-se. De ser feliz. Poderia Ter sido um bom José, mas sua vontade maior de aparecer e vencer o levaram a ser conhecido, em todo o Brasil, pelo sobrenome "Assis Valente". Compositor e protético ( já se disse ) e mais desenhista, caricaturista, escultor, pintor, autor teatral irrevelado , blagueur irônico e incorrigível boêmio. Uma genialidade perdida. E bom de verso e rima. Mas, infeliz, irrecuperavelmente infeliz.
Quando o compositor Assis Valente surgiu no cenário musical do começo dos anos 30, rádio e disco formavam um binômio de divulgação iniciante. A transmissão radiofônica ( Entre nós, de 1922 em diante) vinha recebendo um tratamento amadorístico e pedante. Foi o disco fonográfico que, como veículo de comunicação e divulgação sonora de massa, permitiu ao rádio vir a ser durante os anos 30 e 40 e 50 o melhor meio de transmissão de alegria musical ao povo. Até hoje é assim. Gravado eletronicamente a partir de 1927 e lançado por um sistema ( moderno então ) de comercialização e distribuição mais eficiente, o disco fonográfico empurrou o rádio para o gosto popular. Era um tempo "vamos ouvir...", "acabamos de transmitir na voz de ..." que fizeram sucesso, o cartaz e popularidade de Estefânia de Macedo, Francisco Alves, Carmen Miranda, Carlos Galhardo, Orlando Silva, Silvio Caldas, Bando da Lua, Anjos do Inferno e tantos outros. Eram os cantores do rádio, intérpretes de "nossa música popular e verdadeiramente brasileira". E bota "popular" nisso aí, porque todos esses nomes – astros e estrelas de nossa radiofonia – surgiram da massa anônima que cantava nas ruas do Rio. Era música feita autenticamente pelo povo e seus criadores e intérpretes vinham das camadas mais simples da população. O povo cantava no Carnaval e no meio de ano por uma bendita alegria que teimosamente ainda domina a alma brasileira. O carioca era emocional e bem humorado por excelência. Tudo era espontânea, nada de performance, nada produzido ou estudado para agradar a massa. Tudo ocorria naturalmente. Como na natureza. A criação divina intercedida e a vida era fácil, risonha e simples. Mas, Assis Valente...
Fatos pesquisados e verificados, Assis Valente veio da Bahia para o Rio antes de 1930. Instalou-se como protético na rua da Carioca. Bom de trabalho mas já com uma tendência para a música. Tinha uma necessidade pessoal de projetar-se, de ser visto, aquela carência famigerada de afeto de órfão saudoso da família desconhecida. E, nos anos 30, nada melhor que o rádio e os jornais para fazer alguém conhecido e popular.
Farejando o rumo. Assis usou sua genialidade nata sonora. Fez versos alegres e tristes, cantando dores íntimas e saudades reprimidas em melodias esfuziantes de ritmo e entusiasmo. Quem ouve seu primeiro sucesso – Boas festas, de 1932 – sente uma tristeza imensa brotando na música suave e simples, a infelicidade pintada em sons harmoniosos, contagiantes.
Sucesso de melodia gravada – ao tempo – era sucesso do cantor. Era o cantor quem cantava e era reconhecido. O compositor, o criador, concatenador de sons e versos, era outro capítulo. Nem aparecia. Nada de retratinhos, entrevistas, destaques. Carmen era sucesso – Joubert de Carvalho, seu compositor, apenas um médico pouco conhecido. Francisco Alves, meu deus, um sucessão; Mário reis um dândi de elegância e cultura – Cartola, Ismael Silva, Alcebíades Barcelos ou brancura sobreviviam nas rodas de samba da Mangueira e do Estácio de Sá.
Para a imensa carência de um José de Assis Valente isso não bastava. Ele compunha e versejava fácil como os outros, mas precisava mais. Tinha que ser sucesso, visto e apontado nas ruas. Por isso Assis se autoproduziu como um fen6omeno na música Popular e no rádio. Era protético e tinha lábia. Aprendeu a falar bem. Era elegante de corpo, passou a "andar no trinque", vestido no fino da moda. Fez-se amigo de jornalistas. Criou histórias fantasiosas sobre suas origem e vida na Bahia, ganhou fama de rico e excêntrico, criou promoções artísticas em que estava sempre presente. E furou literalmente a barreira da projeção noticiada. Dizem até que comprava a dinheiro ou com gentilezas e favores os espaços que seguidamente repetiam fotos e entrevistas suas. Sucesso nas rádios na voz de seus cantores, destaque nas folhas e revistas, ele venceu fácil até o fim dos anos 30.
Para o grande público um protético que fazia sambas e marchas deliciosas. Compositor que bordava cenas da vida carioca com pinceladas sonoras espetaculares; Tem francesa no morro; good by, boy – 1933; Uva de caminhão 1939. O compositor que teve a ousadia de, num Rio repressor e censurante como o dos anos 30, abordar problemas do ponto de vista feminino, como em Fez bobagem – 1942, Camisa listrada – 1937, Recenseamento – 1940, ou Maria boa – 1936. E tome foto, notícias, retratinhos distribuídos com autógrafo, aparições em palcos e circos. Um autêntico animador cultural de nossos dias. Mas...
Sambista e cantor de rádio, artista de teatro e jogador de futebol eram populares mas gentilmente esnobados pela camada social dirigente. A elite que cantava no chuveiro e gritava nos campos de peleja torcia também o nariz aos que agradavam e divertiam o povo. Correto era ser trabalhador, Ter emprego fixo, ser profissional definido. Cantoria, boêmia, jogo e seresta eram malandragem. Premido por seu sócio no laboratório de prótese dentária, Assis Valente lutou por ser compositor mas acabou capitulando. A mão do destino, seu karma pessoal levaram Carmen Miranda – sua intérprete e fada madrinha – para os Estados Unidos em 1939, casaram Assis Valente com uma jovem e bonita datilógrafa suburbana em dezembro do mesmo ano e deram-lhe uma filha `linda` chamada Nara Nadyle em 1941.
Bem que ele se esforçou por fugir à regra popular do "pau que nasce torto, morre torto..."
Havia problemas outros e dualidades. Assis era um carente incurável e um descontrolado financeiramente. Gastava à larga, era amigo mão aberta, assumia para si e pelos outros responsabilidades que não podiam cumprir. E tinha uma mania danada de proteger rapazes desamparados, ajudar mocinhas incompatilizadas em seu meio familiar. Pijama e trabalho, família e festinha de aniversário não casavam com seu mundo ilusório e musical. Desajustou no lar. E daí para frente, desajustou na vida.
Resvalou na ladeira do desengano e desceu aos trambolhões nos anos 40, chegando até a doença grave e internação para tratamento mental. Recompôs-se, foi à tona, voltou a fazer sucesso, mas nunca mais foi sucesso. Subiu e desceu, cresceu e afogou-se, inúmeras vezes, nos 18 anos seguintes. Chorou sempre e por toda a vida até o último suicídio num fim de tarde a 13.3.1958 ( antes tentou morrer diversas vezes, sem sucesso ) a saudade da esposa e da filha. Lutou sempre contra o sistema e moral imposta, com suas dualidades de trabalhador e malandro, compositor e protético, homem do lar ( nunca reconstruído ) e boêmio independente. E sofria ainda o agravante de uma ambiguidade estrutural íntima.
Que hoje, ou logo depois dos anos 60, poderia ser melhor compreendida pelos que criticavam no fim da vida. Ou melhor, aceita por ele próprio que se achava irrecuperável como profissional e como artista. Optou por partir antes do tempo previsto pela Vontade Divina.
Mas, olhando as pautas musicais, ouvindo Alegria – 1937, Minha embaixada chegou – 1935, Recenseamento – 1940, os da atualidade poderão entender a alegria que vibrava dentro de Assis Valente. Reouvindo Boneca de pano – 1950, relembrar seu meio musical, os dancings, os cabarés de um Rio noturno que ainda cantava e ria. Risos e canto que Assis Valente captou e musicou para sua gente. Embora autopunitivo e dito maldito por muitos, Assis Valente é hoje um dos `imortais` da música popular. Pena que sentido, sofrido, automacerado por suas dores íntimas e desenfoques pessoais, do lado claro da rua da sua vida, ele haja preferido o muro escuro e sombrio. "Gosto mais do outro lado", foi ele que disse. Uma pena. Um desperdíçio em talento e arte criadora. Que pena, Assis Valente!
Francisco Duarte
Referencias bibliográficas: Encarte do ATR 32009 Acervo Funarte Música Brasileira
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